O material abaixo foi publicado
pelo site da revista Cristianismo Hoje e é da autoria de Rafael Dantas.
Ovo da serpente
Crescimento do ateísmo no Brasil tem raízes
dentro da própria Igreja cristã.
O
esfriamento da fé cristã começa a se tornar uma realidade visível no maior país
católico do mundo, e onde a Igreja Evangélica tem experimentado crescimento
exponencial. Os brasileiros ateus, agnósticos e sem religião já somam quase 15
milhões, segundo dados do último recenseamento, elaborado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – números que já se equiparam ao de
habitantes do Rio de Janeiro, o terceiro estado mais populoso do país. Numa
nação de religiosidade evidente, no qual o Catolicismo ainda é hegemônico e
quase todas as pessoas repetem, mesmo sem sentir, bordões como "graças a
Deus" ou "se Deus quiser", percentual tão elevado – e crescente
– chega a assustar, ainda mais diante do crescimento econômico que, embora
arrefecido em 2012, foi a regra brasileira ao longo da última década. Isso
porque, conforme se observa no Primeiro Mundo, quanto mais rica uma sociedade,
maior é sua tendência ao secularismo.
Veja-se,
por exemplo, países ricos como a Suécia e a Dinamarca, que já têm,
respectivamente, 64% e 48% de suas populações ateias. Se nenhum movimento
interromper o esfriamento da fé, nas próximas quatro décadas, nações como
Canadá, Austrália, Áustria, Finlândia, Irlanda, Holanda, Nova Zelândia, Suíça e
República Tcheca terão a maioria de sua população longe de Deus, segundo dados
da American Physical Society, organização especializada em estudos científicos
e que aferiu a rejeição à figura de Deus entre aqueles povos. Outro estudo,
este do Fórum Pew – que estuda as ligações entre religião e vida pública –,
aferiu que os indivíduos sem filiação religiosa já constituem o terceiro maior
grupo do mundo na esfera religiosa (ou antirreligiosa, no caso), com 1,1 bilhão
de pessoas, atrás apenas do Cristianismo e do Islamismo. Mesmo que,
estatisticamente, os ateus, agnósticos e pessoas sem religião não representem
ameaça imediata à religiosidade do Brasil de todos os credos – eles são apenas
8% da população nacional –, é preciso reconhecer que os chamados seculares
pertencem a segmentos influentes da sociedade. Eles têm acesso à mídia e à
academia, além de pertencer aos setores mais favorecidos economicamente, os chamados
formadores de opinião.
Mas isso
não é tudo. O ateísmo é alimentado, sobretudo, pela modernidade e pelo
descrédito em relação às instituições religiosas. Embora Deus jamais vá morrer,
ao contrário do que preconizou Nietzsche no século 19, poucas vezes, ao longo
da história humana, ele foi tão questionado e combatido – sobretudo, por causa
do comportamento daqueles que se pretendem seus representantes na Terra.
Pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que, para 64% dos brasileiros, existe
corrupção nas igrejas evangélicas. Em relação à Igreja Católica, o índice é um
pouco menor – 53% –, mas, ainda assim, elevado. A inusitada renúncia do papa
Bento XVI, cujo pontificado foi severamente questionado por escândalos morais e
financeiros envolvendo a alta cúpula da Igreja de Roma, aumentou ainda mais
essa percepção. "Não há uma única razão para esse movimento de afastamento
de Deus", aponta o professor Maruilson Souza, PhD em Educação Teológica e
major do Exército de Salvação, igreja da qual é supervisor para o Nordeste.
"Vivemos um tempo de muitas mudanças. Os valores são questionados e um
desses é a crença em Deus. Atualmente, há uma tendência de se desvalorizar tudo
aquilo em que tradicionalmente se acreditava."
A bem da
verdade, no Brasil, não se pode falar sequer em um movimento ateísta, já que,
diferentemente do que acontece na Europa, os ateus brasileiros não fazem tanto
barulho. No Reino Unido e na Espanha, até outdoors e cartazes impressos em
ônibus com dizeres como "Deus não existe" são vistos pelas ruas, e a
cultura secular impregna os mais variados setores. Ícones do ateísmo moderno,
como o biólogo e escritor britânico Richard Dawkins, transformam seus livros,
como Deus, um delírio, em best-sellers de projeção mundial. Por outro lado,
políticas secularistas em países como a França, onde existem leis impedindo a
exibição de símbolos religiosos em espaços públicos, jogam a questão para o
centro dos debates. O que existe por aqui são alguns grupos, como a Atea –
Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos – e iniciativas isoladas. "Tem
havido uma mudança de mentalidade: até um tempo atrás, ateísmo era tido como
algo complicado, coisa que só filósofos ficavam discutindo. Com livros mais
populares, ficou mais fácil para as pessoas saberem o que é o ateísmo", diz
o funcionário público Alexandre Pereira, criador e mantenedor do site Ateus do
Brasil. Além de artigos e reflexões do próprio autor, ali o internauta tem
espaço para expor seus pontos de vista e saber mais sobre o ateísmo no Brasil e
no mundo. "O que acontece é que a religião está longe de ser aquele guia
de moral que prega ser. As pessoas são boas ou más independentemente de
religião", aponta. "A vida é melhor quando não existe aquele medo de
ir para o inferno se você fizer algo ruim ou coisa assim."
"DESCRÉDITO"
O
professor Luiz Macedo, 26 anos, ateu declarado, afirma que já sofreu inclusive
manifestações preconceituosas: "Uma vez, recusaram-se a me atender num
estabelecimento comercial porque eu sou ateu. O gerente da loja, que me
conhecia, era evangélico". No seu dia a dia, contudo, ele afirma não se
incomodar com as tentativas de evangelização, mas reclama dos excessos e do
fato de que esses mesmos crentes que querem ganhar seu coração para Jesus não
se dispõem a escutá-lo quando fala de suas convicções. "Gosto de
desmistificar a fé, a religiosidade popular, do mesmo jeito que as pessoas que
professam uma crença falam dela. Mas poucos estão disponíveis para ouvir",
declara.
Uma
característica que tem marcado o crescimento dos sem religião no Brasil é que a
decisão de deixar a ideia de Deus de lado acontece cada vez mais cedo. A idade
média das pessoas que se enquadram na categoria é a mesma de Macedo, 26 anos –
justamente, o período normalmente vivido na universidade, onde os
enfrentamentos à fé e a relativização de valores se acentuam. É na juventude
que se concentra o maior índice de abandono da fé. Estudo do Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicos (Ibase) aponta que, no Brasil, 14%
dos jovens declararam não ter religião, contra 7% dos adultos. "Isso é
resultado da crítica que esses jovens fazem ao chegar à idade adulta, quando
não veem na prática o mesmo que ouviram nas pregações e estudos bíblicos",
destaca o pastor Abraão Júnior, de origem batista. "Os jovens não querem
se identificar com um movimento, qualquer que seja, que não lhes passe crédito.
E esse descrédito tem a ver com a instituição religiosa e com os pais. Assim,
os vínculos com a fé são facilmente quebrados ao se ingressar na
universidade".
O
auxiliar administrativo José Ramos, de 27 anos, fez esse percurso. Criado sob
princípios cristãos, ele hoje repudia a fé. "Tive várias decepções na
igreja e depois passei por um processo intelectual. Venho de uma família de
forte tradição religiosa, mas hoje, a religião, para mim, é uma grande
cegueira". Embora garanta defender a liberdade religiosa, ele agora sente
a necessidade de levar outras pessoas a abandonarem a fé. Com a mesma
satisfação com que muitos crentes comemoram o crescimento da Igreja Evangélica
no país, Ramos, que mora em Vitória (ES), também vibra com o maior número de
pessoas que confessam não crer em Deus. "Defendo que os ateus tenham
direito a expressar seu pensamento. O mundo ainda será ateu."
Estudos
da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) apontam que, de fato, é no
ambiente acadêmico, onde há maior exposição dos alunos a ideias e teorias que
questionam a existência de Deus – não apenas a imagem judaico-cristã
cristalizada no imaginário popular, mas a própria ortodoxia de quem segue a
Bíblia –, que o ateísmo ganha força. Além disso, muito da resistência desse
meio para com os cristãos consiste no fato do secularismo atual apresentar o
Deus do Cristianismo apenas como uma opção entre outros tantos caminhos de
experiências religiosas ou místicas, apresentadas como igualmente válidas. E,
nesse cenário de pluralismo e relativismo, a exclusividade solicitada pela fé
cristã acaba sendo confundida com intolerância.
O caminho
para alcançar o coração dos universitários que estão longe de Deus, na opinião
do secretário geral da ABUB, Reinaldo Percinoto, passa pelo estabelecimento de
relacionamentos, que dificilmente são conquistados através do formato
tradicional de atuação das igrejas. "Em primeiro lugar, precisamos ouvir
as pessoas que se acham fora da comunidade cristã. E, também, trabalharmos
criativamente para buscar pontos de contato que ajudem aqueles que estão ao
nosso redor a construírem pontes entre a sua situação real e a mensagem do
Evangelho. Claro que esses espaços são o estágio inicial, o ponto de partida,
para ajudar as pessoas a se aproximarem do Reino de Deus, não o porto
final", diz. Percinoto cita que esses espaços de oportunidade podem estar
na própria cultura, através da música, do cinema e da literatura, por exemplo.
TRADIÇÃO
ILEGÍTIMA
"Quando
as pessoas descobrem que algumas verdades da Igreja, de fato, não são bem como
aprenderam, há uma decepção que acaba afogando a fé", sintetiza o
funcionário público Henrique Carneiro, 32 anos, membro da Primeira Igreja
Batista em Dois Unidos, no Recife (PE). Aluno do curso de Ciências Contábeis da
Universidade Federal de Pernambuco, ele acredita que ainda existe certo atrito
entre os cristãos e os ateus, mas que há uma acomodação por ambas as partes.
"Defendo que devamos respeitar a visão das pessoas sem religião, pois só
assim poderemos conseguir influenciá-los de alguma maneira. É necessária uma
aproximação, sem que haja uma imposição de verdades. Mas quem se dispõe a
pregar aos intelectuais tem que conhecer não apenas de religião, mas de
mundo", observa. "O movimento evangélico, no Brasil, cresceu muito,
mas desaprendeu a pensar. Por isso, não consegue dialogar com as novas
demandas, como o avanço do secularismo", concorda o professor Maruilson.
Para o
pastor e professor de teologia Rubens Muzio, a superficialidade do Cristianismo
praticado no país pode ser apontado como uma das principais alavancas do avanço
do secularismo. "A tradição cristã do Brasil não tem raízes legítimas: ela
começou com a colonização do país e com uma relação espúria entre Estado e
Igreja", aponta. "Ser cristão, em última análise, era adotar a
cultura portuguesa. Do ponto de vista de muitos ateus e agnósticos, essa
atitude religiosa dominadora continua sendo uma afronta às outras visões de
mundo da atualidade". Na opinião do teólogo, a maioria dos brasileiros não
vivencia essa tradição no dia a dia – ao contrário: nos dias de hoje, continua
Muzio, existe um pluralismo religioso intenso e violento. "Assim, quaisquer
tentativas de se afirmar que há um único caminho para a eternidade serão vistas
como desrespeito absoluto a toda autonomia e liberdade característica da
vivência pós-moderna."
Já o
pastor André Mello, da Igreja Presbiteriana da Trindade, em Florianópolis (SC),
identifica que o crescimento dos ateus e agnósticos é um "fruto
amargo" da fermentação de uma parte do movimento neopentecostal. "O
modelo da teologia de negócios, da igreja-empresa ou da megaigreja gera,
irremediavelmente, um rebanho de pessoas machucadas, apunhaladas e esfoladas em
sua fé", sustenta. Estas pessoas, continua o religioso, fazem um movimento
difícil, que é o abandono da religiosidade tradicional. "Esse movimento é
acompanhado de grandes custos emocionais. Daí, quando se decepcionam,
simplesmente não querem mais saber de igreja". Desta forma, um dos
principais motores do crescimento do ateísmo e do agnosticismo em terras
brasileiras está justamente dentro das comunidades cristãs.
Mello
está preocupado com a escalada das coisas no Brasil. "A crise de diálogo e
de comunicação das igrejas com esta geração é a mesma crise da classe política
com a sociedade. As igrejas copiam o que há de melhor e pior na sociedade. No
entanto, elas deveriam ser, apenas, diferentes". Para ele, o que já aconteceu
lá fora pode repetir-se aqui. "De repente, alguém descobre que a frase
'Deus seja louvado' deve ser retirada das cédulas do real", diz ele,
lembrando uma iniciativa do Ministério Público que visa a secularizar o
dinheiro brasileiro. "Outras pessoas desejam que os crucifixos sejam
retirados das repartições públicas e instituições bancárias. Alguns até
questionam o uso de recursos públicos na restauração e recuperação de templos
católicos antigos". O problema, ele diz, está mais nos erros dos grupos
religiosos, que abrem espaço para a fermentação de sentimentos que levam a um
sentimento antirreligioso. "O problema dessas pessoas não é com a religião
organizada; o que as move é o ressentimento emocional contra o abuso religioso.
Se os próprios pastores e igrejas não reagirem contra os excessos, outros
reagirão."
O pior
cenário, diz o ministro presbiteriano, seria uma soma da crise do Catolicismo
romano europeu com a crise do evangelicalismo norte-americano. "Daí,
teríamos um Brasil pós-religioso", comenta. "Sinceramente, não creio
que é este o nosso caso. É mais fácil, no Brasil, o indivíduo optar por um novo
caminho religioso do que por um ateísmo militante. "Mestre em missiologia
e professor do Seminário de Educação Cristã (SEC), Diego Almeida lembra que o
crescente grupo dos sem religião – sejam eles ateus, agnósticos, seculares ou
decepcionados com a fé – não pode deixar de ser alvo dos esforços da Igreja.
"Todo o mundo, hoje, é alvo de missões. Nosso país parece estar seguindo
uma triste trilha já percorrida por europeus e norte-americanos, cujos povos
têm se tornado cada vez mais secularizados". O missiólogo aponta que,
mesmo de forma silenciosa, há um movimento em busca dessas pessoas
decepcionadas com a religião ou não convencidas pelo Evangelho que lhes é
pregado. "A Igreja não pode ficar parada frente ao crescimento desses
grupos, que compreendem desde os que têm negado Deus aos que se afastam do
convívio espiritual, que deveria ser saudável e terapêutico", alerta.
(Colaborou nesta matéria: Carlos Fernandes).
O artigo original publicado pelo
site da revista Cristianismo Hoje poderá ser visto por meio desse link aqui:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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