O material abaixo foi publicado
pelo site da revista ÉPOCA.
“Ajudei a escrever a primeira 'Torá' das mulheres”
Na
tradição judaica, o trabalho de copista do Pentateuco é o ofício mais sagrado.
Mulheres não eram consideradas confiáveis para fazê-lo. Fui a primeira mulher
do mundo a receber um diploma de escriba
EM
DEPOIMENTO A RUAN DE SOUSA GABRIEL
As
mulheres da minha família sempre foram um pouco revolucionárias. Nunca se
encaixaram no estereótipo da “mulherzinha” que depende do marido. Minha avó,
nascida em 1901, na Itália, já trabalhava fora. Era contadora. Minha tia,
Dorina Epps, formou-se médica nos anos 1950. Foi professora da Universidade de
São Paulo (USP) e, dois anos, atrás ainda trabalhava. Participou da luta pelo
direito à cirurgia de mudança de sexo no SUS. Esse protagonismo feminino era
normal na minha família e enchia a todos de orgulho. No campo da religião, era
mais complicado. Para que mexer nisso? Religião não precisava mudar, todo mundo
já estava contente. O desconforto para lidar com o tema é compreensível numa
geração que precisou emigrar por causa da perseguição religiosa.
RACHEL
REICHHARDT
Nasceu em
8 de julho de 1959. É professora de
hebraico desde a juventude e trabalha com educação judaica na Comunidade
Shalom, em São Paulo. Em 2004, recebeu o diploma de escriba da Torá"
Sempre
gostei de rituais e da vida religiosa. Meu engajamento inicial foi no judaísmo
ortodoxo, que eu conhecia. Sempre buscava respostas a meus questionamentos, até
que um dia percebi ter ido longe demais. No início dos anos 1980, participava
de um grupo de estudos, em Israel, com o rabino Meir Kahane (1932-1990), que
chegou a ser eleito para uma cadeira no Parlamento israelense. Ele dizia que,
para sermos bons judeus, tínhamos de matar dois árabes por dia. Fiquei
assustada: a própria Bíblia não diz que é proibido matar? Ele respondeu que
tínhamos de ler tudo com parcimônia. Deus só se revelou a Moisés depois que ele
matara um egípcio e fugira para o deserto. Do mesmo modo, dizia Kahane, se
quiséssemos que Deus se revelasse a nós para libertar nosso povo, deveríamos
seguir o exemplo de Moisés e matar dois árabes por dia. Esse discurso
entusiasmou todo mundo. Fiquei apavorada! A Bíblia podia ser lida daquele jeito?
Aquilo era muito diferente do que tinha aprendido em casa, com meus pais.
Preferia a Bíblia da minha casa.
Meus
questionamentos continuaram. Ainda em Israel, trabalhei como babá na casa de um
rabino reconstrucionista, uma linha judaica menos conservadora. Ele me indicou
várias leituras que respondiam às minhas questões. Em 1984, fui para o Rio de Janeiro, onde
comecei a frequentar a comunidade do rabino Nilton Bonder, cujas propostas eram
parecidas com as que encontrara nos livros em Israel. Construímos a primeira
sinagoga igualitária do Brasil, onde homens e mulheres participavam dos rituais
e sentavam-se lado a lado.
PIONEIRA: A escriba Rachel Reichhardt na Comunidade Shalom, em São Paulo. Ela participou
da primeira Torá escrita por mulheres (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
Quando
comecei a participar dos rituais, lembrei-me de uma escultura que vira pela
primeira vez no Museu do Cairo, em 1983. Era um escriba. A figura do escriba
sempre me fascinou. A tradição bíblica, que impacta toda a nossa civilização,
foi transmitida por um homenzinho que, nos museus, é representado por uma
escultura minúscula. Ninguém se dá conta da existência desse ser, ainda que ele
tenha nos transmitido as bases da cultura ocidental. Também queria ser escriba,
ou melhor, soferet, como se diz em hebraico, o mais sagrado dos ofícios para a
religião judaica. Só havia um problema: na tradição judaica, o trabalho de
copista da Torá (o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, conhecido
como Pentateuco) é restrito a homens. Não judeus, crianças, escravos, imberbes
e mulheres são proibidos de escrever os pergaminhos do Pentateuco. Esses grupos
não são considerados confiáveis para pôr na forma de letras o nome de Deus
neste mundo.
Em 1999,
fiz um curso de caligrafia judaica na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde
pude escrever o rolo de Ester, único livro da Bíblia hebraica que não registra
o nome de Deus e, por isso, pôde ser escrito por mulheres ao longo da história.
Cinco anos depois, no Seminário Rabínico Latino-Americano, em Buenos Aires,
conheci o rabino Abraham Skorka, uma referência no judaísmo na América Latina.
Ele concordou em pesquisar comigo os motivos da proibição às mulheres. Depois
de estudar toda a Bíblia, todo o Talmude (comentários rabínicos à Torá também
considerados sagrados), ver todas as vírgulas, ele concluiu que sim, uma mulher
poderia se tornar escriba. Segundo a cultura que escreveu as leis talmúdicas,
mulheres e outros grupos tinham responsabilidade para entender o que
significava a perpetuação do texto da revelação divina. Concluímos que meu
compromisso de décadas com a religião e o compromisso que eu mesma assumira com
a perpetuação do texto sagrado me tornavam confiável e apta para esse trabalho.
Foi o próprio rabino Skorka quem assinou meu diploma. O primeiro diploma de
escriba concedido a uma mulher no mundo.
Diplomada,
lembrei que uma amiga me contara sobre uma mulher que sonhava com uma Torá
escrita apenas por mulheres. Só me lembrava do sobrenome dela: Guggenheim, como
o famoso museu de Nova York. Depois de várias pesquisas, o Google me dirigiu
para a página de uma comunidade judaica de Seattle, nos Estados Unidos, que
financiava o Women’s Torah Project (Projeto Torá das Mulheres). Mandei um
e-mail mencionando que tinha um diploma e gostaria de contribuir com o projeto.
No mesmo dia recebi a resposta de Shoshana Guggenheim. Impressionada com uma
mulher ter conseguido um diploma de uma instituição rabínica, ela me convidou
para participar.
Entre
2004 e 2010, com outras cinco escribas de Israel, Canadá e EUA, participei da
confecção da primeira Torá escrita por mulheres. Era a única escriba diplomada
no projeto. A parte que me coube do Pentateuco foi o livro do Êxodo, que conta
a história da libertação dos judeus da escravidão no Egito.
A Torá
consiste em 65 pergaminhos, com 72 linhas de altura cada um. Existem mais de 4
mil leis que ditam como ela deve ser escrita. Todas as letras têm de ser
escritas na ordem do texto original. Se, ao final da linha, eu perceber que
cometi um erro no começo, tenho de apagar toda a linha, não apenas a letra
errada, pois é proibido inverter a ordem da revelação. Ao escrever o nome Deus,
primeiro é preciso anunciar em voz alta, em hebraico, que será escrito o nome
sagrado, limpar a pena e trocar de tinta. A pena precisa ter um sexto do
tamanho da linha. A observância de todas essas regras por escribas de primeira
viagem – algo que todas nós éramos – explica a demora em completar o projeto.
Apesar de árduo, é um trabalho gratificante. Ao escrever, você se relaciona de
uma maneira especial com o texto. O Êxodo tem uma passagem que todo escriba
adoraria escrever: a abertura do Mar Vermelho. A diagramação do texto em três
colunas permite ao escriba ver o mar se abrir.
Entre 2004 e 2010, com cinco escribas de Israel, Canadá e Estados Unidos, participei da confecção da primeira Torá das mulheres. Eu era a única escriba diplomada no projeto (Foto: arq. pessoal)
A Torá
das mulheres foi entregue em 15 de outubro de 2010, em Seattle. Foi lá que nós,
as escribas, nos encontramos pela primeira vez e costuramos os rolos da Torá.
Levei uma comitiva comigo: meus pais, minha irmã e duas amigas. Foi muito
especial ter meus pais a meu lado. Foi naquele momento que caiu a ficha para
eles do que aquilo representava para mim. Era um momento histórico no judaísmo.
Meu
objetivo não é romper paradigmas. Gosto de pensar que podemos transformar as
tradições quando estamos dentro do sistema. Mesmo sistemas tão fechados, como
as religiões, podem ser transformados. O que não podemos mais é ouvir que a mulher
não pode. A mulher pode.
O artigo original da ÉPOCA poderá
ser visto por meio desse link aqui:
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/ajudei-escrever-bprimeira-tora-das-mulheresb.html
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Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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