"Muitos deputados têm financiamento de gestores de penitenciárias
privadas e empresas de segurança. Estamos falando de muito dinheiro",
revela advogada. Conheça os mitos e os interesses por trás da redução da
maioridade penal no Brasil
(Esquerda): deputados comemoram a
aprovação da PEC da redução da maioridade penal na CCJ. (Direita): Pedro*
perdeu o irmão para o crack, largou a escola e passou duas vezes pela Fundação
Casa (Imagens: Marcelo Camargo e José Cícero)
O artigo abaixo é de autoria de
Andrea Dip e foi publicado no site Pragmatismo Político.
Os
interesses por trás da redução da maioridade penal no Brasil
Andrea Dip, Agência Pública
“Todo mundo dizia que eu não iria
passar dos 15. Mas ó, tô aqui, firme e forte, 29 anos, venci a estatística. Um
homem feito, trabalhador. Mas passei meu veneno na Fundação Casa, vou dizer. Na
época era Febem ainda. Tudo começa porque a gente não tem estrutura aqui na
periferia. A molecada corre pra onde? Pra rua. O refúgio é rua, sempre foi. Eu
recebi educação da minha mãe, guerreira, criou sozinha cinco filhos. Mas quem
me ensinou mesmo foi a rua. Já passei fome na rua, já bati na rua, já apanhei
na rua”, conta Pixote, na pracinha perto da sua casa, no Jardim Vazame, região
metropolitana de São Paulo. “Com 13 anos eu era moleque doido, a gente não
tinha o que fazer. Comecei a roubar junto com outros meninos daqui. A gente
roubava mercadinho, coisa pequena. Minha mãe dormia no serviço, e minha irmã
não conseguia me segurar em casa. Um dia nós pulamos o muro de uma casa pra
roubar roupa, CD, sem arma, nem era pra vender na quebrada, era só coisa
pequena que a gente queria. Daí fomos abordados pela polícia, já no caminho de
volta. Eles bateram, falaram que iam matar a gente. Foi a maior decepção pra
minha mãe. Fiquei um ano na Febem, que depois virou Fundação Casa, mas que de
casa não tem nada porque aquilo é cadeia. Apanhei muito lá dentro, sem motivo.
Eles tiravam a gente do quartinho e espancavam. Vi cada coisa naquele lugar.
Quando eu saí, pensei na minha mãe. Que não queria dar desgosto pra uma mulher
que não merecia. Mas se fosse pensar no que passei lá dentro… A cabeça não sai
boa, a gente não aprende nada na ‘cadeia’. Eu limpei bosta com a mão. Nem era
minha. Foi a única vez que ouvi um por favor lá dentro. ‘Por favor, limpa essa
merda com a mão.’ Daí agora querem botar a molecada na cadeia mesmo, misturada
com os mais velhos. Acham que eles vão sair uns anjos de lá? Vão sair três
vezes pior, com um garfo na mão espetando até o cão. Eu tive sorte, sobrevivi.
Mas muitos não têm.”
Pixote tem razão quando diz ser
um sobrevivente. A violência mata mais os adolescentes do que qualquer outra
camada da população. E, ao contrário do argumento usado por quem defende a
redução da maioridade penal, não são eles os que mais matam, como destaca
Jacqueline Sinhoretto, do Departamento de Sociologia da UFSCar e coordenadora
do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac). “A
percepção social de que os adolescentes são os grandes responsáveis pela
violência no Brasil não resiste à análise acurada. Os jovens entre 15 e 19 anos
são as maiores vítimas da violência fatal e cometem apenas uma parcela destes
crimes”, pontua a professora.
Os homicídios são a principal
causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil e atingem especialmente
jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas
metropolitanas dos centros urbanos, constata o Mapa do Encarceramento: Os
Jovens do Brasil, da Secretaria-Geral da Presidência da República. O relatório, ainda em versão
preliminar, é baseado em dados consolidados do SIM/Datasus, do Ministério da
Saúde, sobre as 56.337 vítimas de homicídio em 2012. Mais da metade delas,
52,63%, eram jovens (27.471), dos quais 77% negros (pretos e pardos) e
93,30% do sexo masculino. E apesar de, esporadicamente acontecerem crimes
envolvendo adolescentes que sensibilizam a opinião pública, como o recente caso
do médico Jaime Gold esfaqueado na Lagoa, no Rio de Janeiro, uma parcela ínfima
comete crimes violentos. De acordo com uma estimativa do Unicef Brasil (feita a
partir de dados da Pnad e Sinase de 2012) e citada em nota da ONU contra a
redução da maioridade penal “dos 21 milhões de adolescentes que vivem no
Brasil, apenas 0,013% cometeram atos contra a vida”.
Confirmando outra percepção de
Pixote, a nota da ONU afirma: “Há inúmeras evidências de que as raízes da
criminalidade grave na adolescência e juventude no Brasil se desenvolvem a
partir de situações anteriores de violência e negligência social. Essas
situações são muitas vezes agravadas pela ausência do apoio às famílias e pela
falta de acesso destas aos benefícios das políticas públicas de educação,
trabalho e emprego, saúde, habitação, assistência social, lazer, cultura,
cidadania e acesso à justiça, que, potencialmente, deveriam estar disponíveis a
todo e qualquer cidadão, em todas as fases do ciclo de vida”.
A legislação brasileira vai mais
fundo, garantindo atendimento prioritário aos direitos de crianças e
adolescentes na forma exigida pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),
promulgado em 1990. Na prática, porém, não apenas o Estado falha em garantir
“um mínimo para esses meninos” em um país profundamente desigual, mas é ele que
faz girar a roda de violência através de seu aparelho repressivo, como aponta
Fernanda Laender, educadora no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de
Campo Limpo. “A violação do Estado produz ‘vítimas’ e estas, quase sempre, se
tornam ‘agressores’. É a reprodução da dinâmica da violência. No fundo, eles
buscam igualdade, ter os mesmos direitos que os outros, e a violência é a forma
mais ‘naturalizada’ de reivindicação. Existe um atravessamento do Estado na
vida desses meninos e suas famílias, mantendo as coisas em seus ‘devidos
lugares’. Pobres e negros cada vez mais pobres e excluídos. Os meninos não se
tornam traficantes, eles crescem em meio ao tráfico e ao crime, mas vivem o
mesmo apelo social de uma sociedade de consumo em que você é o que você tem. Os
meninos querem isso também, ter coisas, ser alguém, experimentar o que é
pertencimento e ser reconhecidos. Quando o Estado se mostra presente nas
políticas públicas periféricas, se apresenta numa perspectiva policial e
penitenciária, ou seja, policial e punitiva.”
Adolescência
interrompida
Em uma rua do Jardim Maria
Sampaio, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo, sentado na calçada vendo o
tempo passar, encontramos – eu, o fotógrafo José Cícero da Silva e o grafiteiro
Gamão, que nos ajudava na missão – Pedro*, 17 anos, com duas passagens pela
Fundação Casa. Ele nos leva até a casa onde mora com a mãe e cinco irmãos, as
janelas de frente para um córrego a céu aberto que destrói tudo à sua volta a
cada chuva forte. A casa de Pedro passa por uma reforma depois de ter caído em
um desses dias de água brava.
O crack levou o irmão mais velho
na mesma época em que Pedro largou a escola sem a mãe saber. O pai está preso.
“Eu tinha 13 anos quando meu irmão morreu. Fiquei meio… Sei lá. Não tinha mais
vontade de ir pra escola e fui pra rua. Rodei [foi pego pela polícia] com 15
anos, por tráfico, e fiquei na Fundação Casa 46 dias. O juiz brigou muito com a
minha mãe, disse que ela não me educava direito. Mas minha mãe nem sabia que eu
tava na rua, ela saía cedinho pra trabalhar e voltava tarde da noite. Fui lá
pra unidade do Brás. Não apanhei, mas vi muito moleque apanhar dos agentes.
Eles levavam pra um quartinho e eu só ouvia os menores gritando. Tampava os
ouvidos pra não ficar ouvindo. Muita revolta, dá. Todo lugar que a gente
entrava e saía tinha que pagar revista. Sacudia a camiseta três vezes, tirava a
bermuda, a cueca, pagava canguru. Umas seis vezes por dia.” Pedro fala de
cabeça baixa, o tom de voz quase inaudível, mas a entonação muda um pouco
quando lembra da escola. “As professoras deixavam a gente escrever, desenhar.
Era bom. Quando eu saí [da Fundação Casa], pensei que queria uma vida de
trabalhador, estudar, ter família. Mas, quando voltei pra cá, o homem pra quem
eu trabalhava disse que precisava de mim porque só tinha eu na rua e ele tava
devendo um dinheiro pra polícia. Como ele me ajudou muito, deu tudo pra minha
mãe enquanto eu tava lá dentro, eu não podia deixar ele na mão. Depois de uns
meses me prenderam de novo, por roubo de carro. A polícia ficou rodando com a
gente na viatura, bateram muito em nós, quebraram uma costela minha no chute.
Jogaram tanto spray de pimenta lá dentro que eu até desmaiei na viatura. Daí me
deixaram uns dias na delegacia e me mandaram pra Fundação Casa [de novo]. A
mesma coisa, vi muito menor apanhar. Mas não aprendi nada lá não. Tem muito
menino que sai muito mais revoltado.”
Quando indagado sobre a redução
da maioridade penal, Pedro fica alguns segundos em silêncio. “Sei lá… Um menor
naquele lugar? Acho que não vai ser boa coisa, né? Os caras vão querer
atropelar, a mente vai sair… Pior.”
Aprovação da PEC na CCJ
No dia 31 de março deste ano, a
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou a admissibilidade da
proposta de emenda à Constituição (PEC) 171, de 1993, que altera a redação do
art. 228 a respeito da imputabilidade penal do maior de 16 anos. Ou seja:
apenas os que têm até 16 anos continuam protegidos pela legislação especial
(ECA) quando em conflito com a lei. Foi o primeiro passo para assegurar o
andamento da proposta na Casa. O placar de votação foi de 42 deputados a favor
e 17 contrários. O texto da PEC, redigido pelo então deputado do Partido
Progressista (PP) Benedito Domingos, alega que os jovens de hoje têm mais
discernimento do que os de antigamente: “A liberdade de imprensa, a ausência de
censura prévia, a liberação sexual, a emancipação e independência dos filhos
cada vez mais prematura, a consciência política que impregna a cabeça dos
adolescentes, a televisão como o maior veículo de informação jamais visto ao
alcance da quase totalidade dos brasileiros, enfim, a própria dinâmica da vida,
imposta pelos tortuosos caminhos do destino, desvencilhando-se ao avanço do
tempo veloz, que não pára, jamais”. E o deputado conclui: “Se há algum tempo
atrás se entendia que a capacidade de discernimento tomava vulto a partir dos
18 anos, hoje, de maneira límpida e cristalina, o mesmo ocorre quando nos
deparamos com os adolescentes com mais de 16”.
O argumento do deputado Benedito
contradiz o parecer de psicólogos e especialistas em adolescência, vista por
eles como uma etapa do processo de desenvolvimento. “São pessoas que estão em
processo de constituição de seus valores”, destaca a presidente do Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo, Elisa Zaneratto Rosa, que se declarou
oficialmente contra a medida. “Todos nós passamos por um processo de
desenvolvimento pelo qual nos apropriamos dos valores postos na sociedade, em
que desenvolvemos capacidades para fazer a reflexão crítica sobre esses
valores. A psicologia reconhece que isso depende de um processo de formação inclusive em relação ao qual o
Estado tem responsabilidade”, explicou em entrevista concedida à repórter Laura
Capriglione para os #JornalistasLivres.
A proposta representa também um
retrocesso em relação ao ECA, internacionalmente reconhecido como uma das
melhores legislações do mundo referente à política da infância e adolescência.
Uma pesquisa realizada pela ONU (Crime Trends) estudou a legislação de 57
países e aponta que apenas 17% delas estabelecem idade penal inferior a 18
anos. E essa é uma tendência: a Alemanha, por exemplo, que tinha
baixado a idade penal, voltou para 18 anos e criou um sistema diferenciado para
jovens entre 18 e 21 anos; o Japão também elevou a maioridade penal para 21
anos.
A aplicação de medidas
socioeducativas – e não de penas criminais – para adolescentes em conflito com
a lei prevista no ECA “relaciona-se com a finalidade pedagógica e decorre do
reconhecimento da condição peculiar de desenvolvimento
na qual se encontra o adolescente”, como citado no Mapa do Encarceramento – Os
Jovens do Brasil. A intenção é proteger e educar as pessoas em desenvolvimento,
um passo definitivo para se distanciar da doutrina que vigorava até então: a de
repressão e disciplina dos “menores degenerados”, criados em ambientes
familiares em ‘risco moral’”, que corriam o risco de se tornarem “criminosos”.
O que não significa impunidade
para os menores de 18 anos. Há medidas socioeducativas cumpridas em meio aberto
(advertência,
reparação do dano, prestação de serviços à
comunidade, liberdade assistida), mas também as que preveem restrição de
liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento educacional),
executadas por instituições públicas,
ligadas ao Poder Executivo dos estados, como a Fundação Casa, em São
Paulo. Segundo o último Sinase, em 2012 havia 20.532 adolescentes em medidas
socioeducativas de restrição e privação de liberdade no Brasil, número
correspondente a 0,10% da população de 12 a 21 anos.
A alma que pecar, essa
morrerá (Ez. 18)
O ECA estabelece também que a
responsabilidade pela proteção de direitos dos mais jovens deve ser
compartilhada pelo Estado, família e sociedade. Mas é à Bíblia que o deputado
Benedito recorre para apoiar o argumento que fundamenta sua proposta de PEC: “A
uma certa altura, no Velho Testamento, o profeta Ezequiel nos dá a perfeita
dimensão do que seja a responsabilidade penal. Não se cogita nem sequer a
idade. ‘A alma que pecar, essa morrerá’ (Ez. 18). A partir da capacidade de
cometer o erro, de violar a lei, surge a implicação: pode também receber a
admoestação proporcional ao delito – o castigo. Nessa faixa de idade, já estão
sendo criados os fatores que marcam a identidade pessoal e surgem as
possibilidades para a execução do trabalho disciplinado. Ainda referindo-nos a
informações bíblicas, Davi, jovem modesto pastor de ovelhas, acusa um potencial
admirável com o seu estro de poeta e cantor dedilhando a sua harpa, mas, ao
mesmo tempo, responsável suficientemente para atacar o inimigo pelo gigante
Golias, comparou-o ao urso e ao leão que matara com suas mãos”.
Nem todos os deputados favoráveis
à PEC, porém, votaram movidos pela visão bíblica do colega do PP. Gabriela
Ferraz, advogada do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), aponta
motivos mais terrenos por trás dos votos: “Muitos deputados têm financiamento
de gestores de penitenciárias privadas e empresas de segurança pública. ‘Eu
pago sua campanha e você vira meu funcionário, meu representante, cumpre minhas
tarefas.’ Assim como foi feito com a educação e a saúde, a gente sucateia o
público pra dizer que o privado é muito melhor. E a penitenciária privada surge
nesse contexto. Interessante trazer a guerra às drogas, a redução da maioridade
bem quando se discute as penitenciárias privadas no Brasil. Essas
penitenciárias privadas, por contrato, precisam estar cheias. Quanto mais
presos, maior o lucro, como mostrou o documentário da Pública. A gente precisa
entender que o deputado está sendo pago pra isso. Assim como a indústria bélica
força a queda do Estatuto do Desarmamento. Estamos falando de muito dinheiro. É
importante lembrar também que existem outros 38 projetos de lei em trâmite que,
de alguma forma, preveem a maior penalização do adolescente”.
A Pública bateu à porta da
maioria dos 42 deputados que votaram a favor da redução na Câmara dos
Deputados, em Brasília. Além de querer conhecer seus argumentos, queria saber
se havia um plano para incluir esses adolescentes em um sistema prisional que hoje
conta com um déficit de mais de 200 mil vagas, além de ser mundialmente
reconhecido por inúmeras violações de direitos humanos.
E com uma taxa de reincidência
criminal em torno de 70%, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De
acordo com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), “as taxas de reincidência nas penitenciárias ultrapassam 60%,
enquanto no sistema socioeducativo se situam abaixo de 20%”.
Apenas quatro deputados aceitaram
falar, e um, Bruno Covas (PSDB), respondeu via SMS enviado pela assessora de
imprensa. A mensagem diz: “O deputado tem a seguinte opinião: acha que o tema
deve ser discutido. Deve ser tema de debate. Por isso votou pela
admissibilidade. Uma oportunidade para ouvir especialistas contrários e
especialistas favoráveis à redução da maioridade. Desse modo, a comissão
especial pode chegar a uma conclusão equilibrada e justa”.
Como antecipou esta matéria do
site Vaidapé, Bruno foi um dos deputados a votar a favor da PEC que obtiveram
financiamento de empresas possivelmente interessadas na privatização de
presídios. Na prestação de contas divulgada pelo TSE, aparecem como doadoras a
empresa Copseg Segurança e Vigilância Ltda. e Grandseg Segurança e Vigilância
Ltda., com doação total de R$ 20 mil. Já o pastor evangélico João Campos
(PSDB-GO) recebeu R$ 400 mil das empresas Gentleman Segurança Ltda. e Gentleman
Serviços Eireli. Felipe Maia (DEM-RN) recebeu doações de R$ 100 mil da empresa
Gocil Serviços de Vigilância e Segurança Ltda. E, de forma mais expressiva, o
deputado Silas Câmara recebeu doações de R$ 200 mil de uma empresa chamada
Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda., que também doou R$ 400 mil para
sua esposa, Antonia Lúcia Câmara (PSC-AC) e R$ 150 mil para a filha, Gabriela
Ramos Câmara (PTV-AC).
A empresa gere presídios
privatizados e é responsável pela administração de seis unidades prisionais só
no Amazonas, estado do deputado. No Tocantins, ela administra outras duas
unidades. A empresa administra também uma unidade no Mato Grosso em parceria
com outras empresas e o Estado (PPP). Procuramos Silas Câmara em seu gabinete e
através de inúmeras ligações, mas não conseguimos entrevistá-lo.
Felipe Maia foi o único entre os
deputados citados acima a receber a Pública em seu gabinete. O deputado disse
que não acredita que a redução da maioridade penal seja a solução para a
segurança pública no Brasil, “longe disso”, mas que esta se justifica “pelo
número de criminosos ou de jovens delinquentes que hoje têm como realidade a
pena socioeducativa de três anos sem registro do delito”. Questionado sobre
qual seria o plano para abrigá-los no sistema penitenciário, ele foi claro: “Eu
sempre defendi e defendo a privatização do sistema prisional porque acho que o
Estado não tem condições de arcar com os custos. Existe a possibilidade de
transformar os presídios em empresas em que você cobra do concessionário a
ressocialização do preso, a não fuga, a não entrada de celulares. Aquilo tem
que dar lucro”. E continua: “Como você vai deixar solto um jovem que mata um
pai de família porque o sistema prisional está falido? Vamos resolver os
presídios!”. Ele atribui a volta da PEC à “coragem do presidente da casa,
Eduardo Cunha, em trazer matérias polêmicas como a terceirização, a reforma
política e a redução da maioridade”.
A coordenadora de pesquisa do
Programa Justiça sem Muros, do ITTC, Raquel da Cruz Lima, também atribui a
Cunha e ao atual momento político a volta da PEC da redução da maioridade
penal. “O Eduardo Cunha volta com essa pauta também para mostrar a ausência de
base do governo. Porque antes ela já tinha ido para votação na CCJ e o governo
segurou. Agora não conseguiu porque não há capital político. Acho que é
justamente para ser uma posição simbólica desse esfacelamento da base aliada e
do poder do governo federal em barrar políticas diminuidora de direitos, como a
da terceirização e outras que estão passando. Isso fica claro nas falas do
Eduardo Cunha.”
Dois pesos, duas
medidas
Outro deputado que votou a favor
da PEC foi Alceu Moreira (PMDB-RS), conhecido por uma intervenção gravada em
vídeo durante uma audiência pública de 2013 sobre a demarcação de terras
indígenas em que recomenda aos detentores da terra que “se fardem de guerreiros
e não deixem um vigarista desses dar um passo na sua propriedade” e que “reúnam
verdadeiras multidões e expulsem [os indígenas] do jeito que for necessário”.
Moreira disse que votou pela redução porque acredita que hoje as pessoas
amadurecem mais cedo e que o adolescente tem clareza do que está fazendo ao
cometer um crime. Faltou clareza ao deputado, porém, ao defender seu ponto de
vista: “Não é pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que se trata o
adolescente, mas também não é através no sistema prisional”. Para explicar a
contradição aparente, alegou que, embora defenda o controle do Estado sobre o
sistema prisional, as empresas privadas deveriam administrá-lo através de
contratação por edital. “Se você paga bem, pode ter certeza que não entra facão
ou telefone lá.” Segundo o site Transparência Brasil, Moreira já foi condenado
por improbidade administrativa; condenado em segunda instância ao pagamento de
multa por contratação irregular de funcionário público; condenado ao pagamento
de multa por conduta vedada a agente público (uso irregular de serviço social de
saúde pública), e é alvo de inquérito que apura crimes da Lei de Licitações e
corrupção passiva.
A Pública entrou em contato com a
assessoria de imprensa do candidato pedindo explicações, mas não teve resposta
até o fechamento da reportagem.
Já o deputado Laudívio Carvalho,
do PMDB de Minas Gerais – membro declarado da bancada da bala e relator da
proposta que revoga o Estatuto do Desarmamento –, diz que não só é a favor da
PEC como luta por isso há muitos anos. “Em Minas Gerais, como jornalista da
área policial, a cada dez ocorrências em que eu trabalhava, em oito havia a
presença de menores em conflito com a lei. Hoje o tempo máximo de um menor
infrator é de três anos. Eu defendo seis anos para crimes de violência média, e
oito para crimes mais graves, contra a vida.” Sobre a crise penitenciária,
repetiu o argumento ouvido diversas vezes pela Pública de outros deputados:
“Nós temos que dotar o Estado de mecanismos para punir com força e cobrar dos
estados federativos que os governantes tenham a responsabilidade legal de fazer
cumprir”.
A fala mais transparente talvez
tenha sido a do deputado Pastor Eurico, do PSB de Pernambuco. Depois de afirmar
que vivemos em um país em que “a consciência da impunidade está nesses chamados
menores, entre aspas, que de burros não têm nada”, ele fez a ressalva: “Cada
caso é um caso”. E escancarou: “Um cidadão de bem que criou seu filho, deu
educação, o menino pega o carro do pai e ‘vou ali’ daí sai, atropela, matou.
Esse menino não é bandido, tem educação, testemunho, formação, ele vai ser
tratado igual ao cara que sai com um revólver sequestra e mata? É diferente.
Tem que parar pra pensar e analisar”.
“Vá até esses delinquentes mirins
e ofereça uma boa casa, viver com dignidade, escola, tudo. Você vai encontrar
um monte que não quer, que quer viver na bandidagem. Hoje é 16 anos; se amanhã
for pra 14, eu voto a favor, não quero nem saber. A instituição não reeduca,
mas, se não reeduca, não é problema meu. Cadeia é lugar onde se pensa. O
problema é que aqui é frouxa a cadeia. O sistema nosso tem que mudar? Tem. A
condição é subumana? É. Vive feito bicho? Vive. Uma cela pra 10 tem 50. Eu sei
disso. Mas não fui eu que cometi crime. Todo menino bandido agora passou a ser
boa pessoa. O que esse pessoal quer? Pega os meninos e leva pra casa, pra viver
com sua família”, concluiu o deputado.
Em artigo escrito em 2013 para o
livro “Quase Noventa Anos, homenagem a Ranulfo de Melo Freire”, a presidente da
Fundação Casa de São Paulo, Berenice Maria Gianella, afirmou que apenas 1,08%
dos adolescentes cumprindo medidas socioeducativas de internação em 2012
respondiam por latrocínio, 0,57% por estupro e 0,78 por homicídio doloso
(quando houve intenção de matar).
Eles já estão presos
“O ECA nunca foi colocado em
prática, então a gente está tentando desconstruir um sistema que nunca foi
efetivado”, diz a defensora pública do núcleo de Infância e Juventude Lígia
Cintra de Lima Trindade. “Esse discurso da impunidade é um mito, eles já estão
em um sistema repressivo. Os adolescentes têm seus direitos colocados em xeque
o tempo todo, às vezes de uma forma mais gravosa que os adultos. E, como no
sistema criminal, as prisões são seletivas, discriminatórias, com a maioria de
pobres e negros cumprindo as medidas socioeducativas. Mas aqui a gente ainda
tem uma margem de disputa, para reivindicar que esses meninos estudem, tenham
uma atenção, que suas famílias sejam colocadas em programas sociais. No sistema
prisional, isso não vai acontecer”, explica Lígia.
Sua colega, a defensora Fernanda
Balera, acrescenta: “A gente tem adolescentes internados por atos pelos quais
adultos não seriam presos, como crimes de ameaça, brigas em abrigo, muitos por
brigas em escola. Um roubo tentado, por exemplo, se fossem aplicar a lei como
ela é mesmo, a pena ficaria abaixo de quatro anos e ele sairia para um regime
aberto, enquanto para um adolescente é muito difícil que isso aconteça. Ele vai
ficar internado por no mínimo oito meses a um ano, que na vida dele representa
um tempo enorme. Quando você tem 15 anos, ficar até os 16 preso, quanta coisa
acontece nesse tempo? Ninguém aqui está dizendo que ele não sabe o que está
fazendo. A gente parte do pressuposto de que aquele é um ser em
desenvolvimento. Ele tem consciência, mas essa consciência está em
desenvolvimento, suscetível a influências, algo muito próprio da adolescência,
e não tem como não levar isso em consideração”.
As defensoras contam que não só o
ato infracional é levado em conta nas audiências, mas também as condições
familiares e até as músicas que eles escutam. “Eu participei de uma audiência
em que o menino compunha músicas, e a juíza queria saber que tipo de música,
porque, se fosse funk ou rap, não era coisa boa”, lembra Fernanda. “As
audiências têm um caráter supermoralizante, o juiz coloca uma lupa na vida do
menino, e é alguém de classe média querendo colocar os seus valores próprios em
uma pessoa que cresceu em outro meio. Mães são encaminhadas pra laqueadura,
para grupos de apoio para aprender a criar seus filhos. Existe, inclusive, um
recorte de gênero aí, porque a figura do pai é geralmente inexistente ou mesmo,
quando existe um pai, é a mãe que toma as broncas.”
Já na primeira audiência que
acompanhou, “por volta de 2000”, o defensor público de Santo André Marcelo
Novaes presenciou uma cena reveladora da disposição dos juízes em relação aos
adolescentes. “A vítima disse que não reconhecia o réu porque o menino que
tinha assaltado usava um boné vermelho. ‘Uma bombeta?’, perguntou o juiz. E
abriu uma gaveta cheia de bonés, pegou um vermelho e colocou na cabeça do
menino. ‘E agora, você reconhece?’, e a vítima respondeu ‘agora reconheço”.
Tortura, submissão e
revistas vexatórias
A violência sofrida por
adolescentes sob tutela do Estado foi alvo de uma série de denúncias do
defensor Marcelo Novaes, que, em 2013, organizou audiências públicas a respeito
das cerca de dez revistas vexatórias diárias pelas quais passam os internos da
Fundação Casa, em São Paulo, contadas à reportagem por Pedro*. “Cheguei a me
afastar por algum tempo, quando um menino denunciou um caso de tortura e uma
semana depois teve ‘um surto psicótico’ enquanto fumava um cigarro e morreu
queimado. O processo foi arquivado”, conta.
Durante a investigação de
denúncias de torturas em unidades do ABC (região metropolitana de São Paulo),
em que 60 adolescentes foram periciados para comprovar uma surra coletiva
sofrida na instituição, ele perguntou para um dos meninos se sofriam muitas
revistas durante a rotina. A resposta foi estarrecedora: “E ele respondeu que
sim, sete, oito, dez, doze por dia. Eles chamam de ‘descascar’. Tira a roupa,
abre as nádegas, agacha, torce as roupas. Eles saem de manhã das celas – porque
são celas, trancadas, clac, clac – e fazem revista. Faz a higiene, paga
revista. Vai para o refeitório, paga revista. Vai pra escola, paga; volta da
escola; paga. Imagina você fazendo isso no seu dia a dia. Eles têm uma linha
amarela desenhada no chão, têm que andar olhando para a linha. Andar com a
cabeça baixa, as mãos para trás, sempre em posição de submissão. Porque
teoricamente eles podem pegar um lápis e matar um agente. Daria para contar os
lápis ao invés de revistar, por exemplo, mas não é feito assim. Essa revista
está no manual de procedimento.”
Reprodução de manual da Fundação Casa
Para Novaes, as revistas não são
simples medidas de segurança, mas também uma forma de submeter os adolescentes.
“Acho que tem uma coisa de docilização do corpo, uma forma de submeter esses
adolescentes, tem uma conotação sexual muito forte, como um estupro
institucionalizado. O discurso que se repete é o do ‘mas ele pode me matar’, e
eu respondo que é mesmo possível. Porque esse menino já passou por um processo
tão violento na vida e, quando ele chega lá, ao invés de você desconstruir essa
violência e tentar construir algo positivo, responde com mais violência. Acho
que o crime é uma resposta errada pra uma situação errada. ‘O mundo é injusto,
meus pais se danam pra pegar uma marmita, meu irmão morreu assassinado pela PM,
não entendo nada na escola.’ Daí eu me pergunto: um menino desses, quando sai
da instituição, que relação vai ter com o mundo? Teve o caso do menino que
colocou fogo na dentista em Diadema. Ele ficou um ano internado. Por quantas
dessas revistas, humilhações e torturas ele passou? Será que ele criou um
prazer em ver o sofrimento no outro? Até que ponto ele não reproduziu o que
viveu? Ele riscou o fósforo, mas quem jogou o álcool? Eu não estou isentando
ele da responsabilidade, mas até que ponto nós não contribuímos pra essa
situação? Vou dizer uma coisa muito grave: se ele for saudável, ele vai se
rebelar.”
Novaes conta que a última
denúncia que acompanhou aconteceu uma semana antes das eleições de 2014.
“Cheguei na unidade, um calor tremendo, todos os meninos de moletom. Pedi pra
tirar e estavam lá as marcas. Os 70 meninos apanharam com cabos de vassoura que
depois a gente achou no lixo. Teve uma vez que eu fui visitar uma unidade em
Mauá com denúncias de tortura, e o negócio era tão feio que eu pedi no
requerimento que os agentes fossem proibidos de usar botas com biqueiras de aço.
Nós temos hoje uma sociedade extremamente dividida, com bolsões de miséria
absurdos. Temos 30 milhões de jovens de 15 a 30 anos sem atividade, sem
perspectiva. São esses caras que vão para o sistema. É nosso exército. A gente
recruta preso ali. E essa questão da criminalização dos jovens vai aumentar se
você colocar um menino num sistema desses, e não o contrário.”
Extermínio, o fim da
linha
A experiência de Lígia como
defensora lhe trouxe outra constatação aterradora: são muitos os casos em que
adolescentes em conflito com a lei – raramente perigosos, como ela destaca –
são exterminados depois de soltos. “Essa imagem do adolescente perigoso,
armado, passa muito longe do perfil dos internos da Fundação Casa. Não é a
maioria. Mas, ao contrário, é impressionante o número de processos que
encerraram por óbito. É realmente muito comum. O que mais uma vez mostra que
eles morrem mais do que matam. Geralmente são exterminados pela polícia. Saem
da Fundação Casa e, no próximo BO em que se envolvem, são exterminados. Em uma
audiência, eu conversei com um promotor e ele, querendo me convencer da redução
da maioridade penal, disse que a culpa de os adolescentes serem assassinados
era desse sistema que garantia a impunidade. Porque o policial prefere matar do
que levar pra delegacia, pra ele ser internado e não acontecer nada; ‘se a
punição for mais dura isso não vai acontecer’ [disse o promotor]. Olha onde
chegamos.”
“O próprio caso do Champinha, que
se usa como exemplo de impunidade, além de ser uma exceção, não faz sentido”,
explica Fernanda, referindo-se ao então garoto de 17 anos que sequestrou,
torturou e matou um casal de adolescentes. “O crime aconteceu em 2003 e ele
está até hoje preso, em um lugar que é uma aberração jurídica chamada Unidade
Experimental de Saúde. Lá ficam meninos que foram diagnosticados com transtorno
de personalidade, e ninguém sabe muito o que acontece.”
A sociedade, porém, parece
esquecer sua responsabilidade constitucional para com os adolescentes,
ignorando fatos e números que mostram que eles são mais vítimas de crimes do
que culpados pelos altos índices de homicídio do país, e não gozam da propalada
imunidade quando em conflito com a lei. Uma pesquisa da Confederação Nacional
dos Transportes, de 2013, revelou que 92,7% dos entrevistados apoiavam a
redução da maioridade penal.
“Parece que a sociedade briga por
um endurecimento por achar que as medidas socioeducativas são brandas, e na
verdade existe uma punição ainda mais dura para os adolescentes porque ela
justamente não tem os benefícios dos processos, ela não tem pena e ao mesmo
tempo replica todas as violências como as revistas vexatórias, a seletividade,
a segregação e as torturas de forma ainda pior. Ainda assim, é preciso que se
entenda que o sistema de medidas vai mal, mas a solução não é endurecer ainda
mais, e sim investir, melhorar e torná-lo menos punitivista”, defende a
advogada Gabriela Ferraz, do ITTC.
Como destaca a pesquisadora
Jacqueline, não há provas de que haja relação entre maior encarceramento e
diminuição da criminalidade: “A análise conjunta dos dados sobre os homicídios
e dos dados sobre encarceramento não permite afirmar que prender mais resulta
em menos homicídios. Na maior parte dos estados brasileiros, houve aumento do
número de presos e crescimento dos homicídios. Prender mais não resulta
necessariamente em redução da violência.”
O desembargador José Renato
Nalini, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e declaradamente contra
a redução da maioridade penal, conclui: “Uma sociedade egoísta quer se livrar
do incômodo e tem como solução trancar todos: os adultos num sistema prisional
carcomido, corrompido, contaminado de vícios insanáveis e que não funciona em
todo o planeta. Já somos o terceiro país que mais aprisiona. Queremos agora ser
o primeiro que mais encarcera menores. Vamos de 18 para 16, depois de 16 para
14, de 14 para 12 e, finalmente, com algum exagero, teremos
berçários-reformatórios. Não é essa a solução. É preciso juízo e fortalecer a
responsabilidade cidadã. Resgatar o princípio da subsidiariedade. Não surfar na
onda recorrente de criar mais tipos penais, aumentar os castigos, instituir
pena de morte. O caminho é outro”.
Paulo*, 29 anos, 9 anos e sete
meses passados dentro de sistema penitenciário, concorda. “Se mandar esses
meninos direto pra cadeia, a mente vai ficar pesada e depois não adianta
segurar porque o bagulho é um câncer. Depois que espalhar, já era, não dá mais
pra conter. Eu vi cara morrer, vi a polícia jogar bomba de gás em uma cela
pequena com 11 caras dentro… Tem noite que eu sonho que tô lá dentro e não
consigo acordar. Imagina isso na mente de uma criança.”
O artigo original poderá ser lido
por meio desse link aqui:
Que Deus tenha misericórdia de
todos nós. Nossos crimes são inomináveis.
Alexandros Meimaridis
PS. Pedimos a todos os nossos leitores que puderem
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