OS REFORMADORES E A LEI – VALOR,
SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Alderi Souza de Matos
Introdução
Um elemento que certamente
influenciou o pensamento tanto de Lutero quanto de Calvino acerca da lei foram
as suas diferentes experiências de vida e de fé. Martinho Lutero (1483-1546)
era um monge agostiniano há doze anos quando iniciou a obra da reforma. Até
então ele praticara uma espiritualidade ascética, rigorosa, legalista, na
tentativa de agradar a Deus e ser aceito por ele. Deus era visto como um ser
justiceiro, implacável e irado. A compreensão da verdade bíblica da
justificação somente pela fé teve um efeito libertador. Isso talvez explique a
atitude um tanto negativa de Lutero em relação à lei.
João Calvino (1509-1564), por
outro lado, era um humanista, e não um sacerdote. Ele não teve nenhuma crise
espiritual profunda ou experiência dramática de conversão. Na realidade, a
única coisa que ele disse certa vez sobre a sua experiência é que ela havia sido
uma “conversão repentina”. Por outro lado, durante três anos ele estudou
Direito em Orléans e Bourges (1528-31). Mas, certamente, a razão principal do
seu interesse pela lei foi a sua profunda consciência da realidade da soberania
de Deus, e da sua santa vontade.
1. Lutero e a Lei
A dialética entre lei e evangelho
é ponto focal da teologia de Lutero, sem a qual não podemos entender suas
idéias acerca de temas como justificação, predestinação e ética. O principal
contraste que Lutero vê dentro da Escritura não é entre os dois testamentos,
mas entre lei e evangelho. Embora exista mais lei que evangelho no Antigo
Testamento e mais evangelho do que lei no Novo Testamento, não se pode
simplesmente identificar o Antigo Testamento com a lei, nem o Novo com o evangelho.
Ao contrário, o evangelho também está presente no Antigo Testamento, assim como
a lei ainda pode ser ouvida no Novo Testamento. Na realidade, a diferença que
existe entre lei e evangelho está relacionada com duas funções que a Palavra de
Deus exerce no coração do crente, e assim a mesma Palavra pode ser lei ou
evangelho, dependendo da maneira como fala ao crente.
A lei é a vontade de Deus, que se
manifesta na lei natural, conhecida por todos; nas instituições civis – tais
como o estado e a família – que expressam essa lei natural; e na declaração
positiva da vontade de Deus na sua revelação. A lei tem duas funções básicas:
(a) como lei civil, ela refreia os ímpios e proporciona a ordem necessária
tanto para a vida social quanto para a proclamação do evangelho; (b) com lei
“teológica”, ela desvenda ao ser humano a enormidade do seu pecado.
É nessa função teológica que a
lei é relevante para o entendimento da teologia de Lutero. A lei é a vontade de
Deus, mas quando essa lei é contrastada com a realidade humana ele se torna uma
palavra de condenação e suscita a ira de Deus. Em si mesma, a lei é boa e
agradável; todavia, depois da queda a humanidade ficou incapaz de satisfazer a
vontade de Deus, e assim a lei se tornou para nós uma palavra de julgamento e
ira. “Assim, a lei revela um duplo mal, um interno e o outro externo. O
primeiro, que nós causamos a nós mesmos, é o pecado e a corrupção da natureza;
o segundo, que Deus causa, é a ira, a morte e a maldição” (Contra Latomus, 3 –
LW 32:224).
Colocando de outra maneira, a lei
é o “não” divino pronunciado contra nós e contra toda realização humana. Embora
a sua origem seja divina, ela pode ser usada tanto por Deus, conduzindo as
pessoas ao evangelho, como pelo diabo, conduzindo-as ao desespero e ódio contra
Deus. Isso se aplica não somente ao Antigo Testamento, mas também ao Novo e até
mesmo às palavras de Cristo. Isso porque, se as pessoas não receberem o
evangelho, as palavras de Cristo permanecem como uma exigência ainda mais
rigorosa à torturada consciência humana. Em si mesma, a lei deixa os seres
humanos numa situação de desespero e, portanto, torna-os joguetes do diabo. “Em
meio à aflição e aos conflitos da consciência, o diabo costuma amedrontar-nos
com a Lei e dirigir contra nós a consciência do pecado, nosso passado ímpio, a
ira e o juízo de Deus, o inferno e a morte eterna, a fim de que dessa maneira
possa levar-nos ao desespero, sujeitar-nos a si mesmo e arrancar-nos de Cristo”
(Preleções sobre Gálatas, 1535 – LW 26:10).
No entanto, a lei é também o meio
pelo qual Deus nos conduz a Cristo, pois quando ouvimos o “não” de Deus contra
nós e contra os nossos esforços, estamos prontos para ouvir o seu amoroso
“sim”, que é o evangelho. O evangelho não é uma nova lei, algo que simplesmente
esclareça as exigências de Deus quanto a nós; não é um novo meio pelo qual
podemos aplacar a ira de Deus. É o “sim” imerecido que em Cristo Deus
pronunciou sobre nós. O evangelho liberta-nos da lei, não por capacitar-nos
para cumprir a lei, mas ao declará-la cumprida por nós. “O evangelho não
proclama nada mais que a salvação pela graça, dada ao homem sem quaisquer obras
e méritos” (Sermão, 19-10-1522 – LW 51:112).
E todavia, mesmo dentro do
evangelho e após termos ouvido e aceito a palavra de graça da parte de Deus, a
lei não é inteiramente posta de lado. Embora justificados, somos ainda
pecadores e a palavra de Deus ainda nos mostra a nossa condição. A diferença é
que agora não precisamos nos desesperar, pois sabemos que, a despeito da nossa
miséria, Deus nos aceita. Assim, podemos verdadeiramente nos arrepender dos
nossos pecados sem tentar ocultá-los, quer negando-os ou confiando em nossa
própria natureza.
Isso nos leva ao conceito de
Lutero sobre a justificação – a imputação da justiça de Cristo. Se a
justificação não depende da nossa própria justiça, mas da atribuição da justiça
de Deus a nós, o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador (“simul justus et
peccator”). A justificação não significa que somos tornados perfeitos ou que
deixamos de pecar (Romanos 7). Na sua vida terrena, o cristão irá continuar a
ser um pecador, mas um pecador justificado e assim libertado da maldição da
lei.
Isso não quer dizer que a
justificação nada represente para a vida concreta do cristão. Ao contrário, a
justificação é também a obra pela qual Deus, além de declarar-nos justos,
também nos faz viver de acordo com esse decreto, conduzindo-nos à justiça.
Portanto, “um homem que é justificado ainda não é um homem justo, mas está no
próprio processo de mover-se em direção à justiça” (Disputa Acerca da
Justificação – LW 34:152). Assim é a vida cristã: uma peregrinação da justiça
para a justiça; da imputação inicial de justiça por Deus até o tempo em que
seremos de fato tornados justos por Deus. Nessa peregrinação, as obras
desempenham um papel importante, como um sinal de que a fé verdadeira de fato
foi recebida. “Devemos confirmar a nossa posse da fé e do perdão dos pecados
mostrando as nossas obras” (O Sermão da Montanha, Mt 6.14-15 – LW 21:149-50).
É nesse ponto que a lei –
especialmente o Decálogo e os mandamentos do Novo Testamento – desempenham um
novo papel na vida do crente. A sua função civil, que é necessária para a ordem
da sociedade, ainda permanece. A sua função “teológica”, que é mostrar o nosso
pecado, ainda é necessária, pois o indivíduo justificado ainda é um pecador.
Mas, agora, o cristão se relaciona de maneira diferente com esse aspecto da
lei. “Porém, agora eu descubro que a Lei é preciosa e boa, que ela me foi dada
para a vida, e agora ela é agradável para mim. Antes ela me dizia o que fazer;
agora estou começando a moldar-me aos seus apelos, de modo que agora eu louvo,
engrandeço e sirvo a Deus. Isso eu faço por meio de Cristo, porque nele creio.
O Espírito Santo entra em meu coração e gera em mim um espírito que se compraz
nas suas palavras e obras, mesmo quando ele me repreende e me sujeita à cruz e
à tentação” (Sermões sobre o Evangelho de João – LW 22:144).
Assim, agora a lei tem uma função
diferente, pois ela ao mesmo tempo repreende os pecadores que os cristãos ainda
são e mostra-lhes o caminho a seguir no seu desejo de fazer o que é agradável a
Deus. A razão que levou Lutero a insistir nesse uso da lei foi a afirmação
feita por alguns entusiastas de que, como tinham o Espírito, eles não mais
estavam sujeitos aos preceitos da lei. Lutero percebeu as consequências
caóticas que resultariam de tal asserção e por isso a corrigiu dizendo que,
embora o cristão não mais esteja sujeito à maldição da lei, a lei ainda é uma
expressão boa e adequada da vontade de Deus. Isso diz respeito às leis morais
expressas em ambos os testamentos, as quais se harmonizam com a lei natural e o
princípio do amor, que é supremo no Novo Testamento.
2. Zuínglio e a Lei
Como resultado de seu enfoque
diferente da teologia, o entendimento de Ulrico Zuínglio (1484-1531) acerca da
lei e do evangelho não é o mesmo que o de Lutero. A sua resposta à questão da
maneira pela qual a lei foi abolida, e do modo pelo qual ela ainda é válida, é
muito mais simples que a de Lutero, carecendo da profundidade das idéias do
reformador alemão. Zuínglio começa fazendo uma distinção entre três tipos de
leis: a lei eterna de Deus, conforme expressa nos mandamentos morais; as leis
cerimoniais e as leis civis. As duas últimas não se relacionam com essa
questão, pois se referem à pessoa exterior, mas a questão de pecado e justiça
tem a ver com a pessoa interior. Portanto, somente as leis morais do Antigo
Testamento devem ser consideradas e elas de modo algum foram abolidas.
As leis civis dizem respeito a
situações humanas particulares. As leis cerimoniais foram dadas para a época
anterior a Cristo. Mas a lei moral expressa a eterna vontade de Deus e,
portanto, não pode ser abolida. O que aconteceu no Novo Testamento é que a lei
moral foi sintetizada no mandamento do amor. O evangelho e a lei são
essencialmente a mesma coisa. Portanto, aqueles que servem a Cristo estão
presos à lei do amor, que é a mesma que a lei moral do Antigo Testamento e a
lei natural escrita em todos os corações. Assim, o primeiro ponto, no qual Zuínglio
difere de Lutero nessa questão, é a sua afirmação de que a lei permanece e de
que o evangelho de modo algum a contradiz.
O segundo ponto de divergência
entre os dois reformadores com referência à lei tem a ver com a sua avaliação
da mesma. Zuínglio não passou pela experiência de sentir-se condenado pela lei,
que foi tão decisiva para Lutero. Portanto, ele não pode aceitar a afirmação de
Lutero de que a lei é terrível e que a sua função é pronunciar sobre nós a
palavra de juízo de Deus. É clara a referência a Lutero quando Zuínglio afirma:
“Em nossa época algumas pessoas de grande importância, como elas imaginam, têm
falado sem a necessária circunspecção acerca da lei dizendo que a mesma serve
somente para aterrorizar, condenar e entregar ao tormento. Na realidade, a lei
não faz nada disso, mas, ao contrário, apresenta a vontade e a natureza da
Divindade” (Sermão, 20-08-1530 – Lat. Zwingli 2:166).
Disso resulta o entendimento de
Zuínglio acerca do evangelho, que é semelhante em muitos aspectos e diferente
em muitos aspectos do de Lutero. Como Lutero, Zuínglio crê que o evangelho representa
as boas novas de que os pecados são remidos em nome de Cristo. Como o
reformador alemão, ele afirma que esse perdão somente pode ser recebido quando
a pessoa está consciente da sua própria miséria – embora ele atribua essa
função ao Espírito antes que à lei. Ele afirma: “Seria ridículo se Aquele
diante de quem está presente tudo o que jamais haverá, tivesse determinado
libertar o homem a um tão grande preço e, no entanto, tivesse decidido
permitir-lhe, imediatamente após a sua libertação, chafurdar nos seus velhos
pecados. Portanto, ele proclama, desde o início, que a nossa vida e o nosso
caráter devem ser transformados” (Sobre a Verdadeira e a Falsa Religião – Lat.
Zwingli 3:119).
Portanto, em última análise, lei
e evangelho são praticamente a mesma coisa. Isso resulta logicamente do
entendimento de Zuínglio acerca da providência e da predestinação divinas. A
vontade de Deus é sempre a mesma e foi revelada na lei. Assim, a função do
evangelho é libertar-nos das consequências de nossa transgressão da lei e
capacitar-nos a obedecê-la.
A segunda parte desse artigo poderá ser lida por meio desse link aqui:
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2015/10/lembrando-os-498-anos-da-reforma_31.html
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
PS. Pedimos a todos os nossos
leitores que puderem que “curtam” nossa página no Facebook através do seguinte
link:
http://www.facebook.com/pages/O-Grande-Diálogo/193483684110775
Desde já agradecemos a
todos.
irmão Alex, paz querido, faz tempo que não passo aqui pelo blog, passei rapidinho aqui para ler acerca da reforma, o sr sempre trás mensagens de estudo, com clareza e referências, tenho visto aqui em POA (RS) uma grande vamos dizer assim " divisões" Eu sou calvinistas eu sou arminiana, ou sou paulo junior, ( aquele pastor que prega a reforma radical no you tube) confesso que nunca fui estudar sobre os primórdios, se o sr tiver algum post por favor coloque para eu ler, obrigado pelo retorno, abraços
ResponderExcluirCara Joyce,
ExcluirGraça e paz.
Periodicamente publicamos arquivos acerca da Reforma Protestante. Segue abaixo uma lista dos mesmos:
OUTROS ARTIGOS ACERCA DA REFORMA PROTESTANTE DO SÉCULO XVI
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2014/10/as-95-teses-de-lutero-para-ajudar.html
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2013/10/reforma-protestante-do-seculo-xvi-ano.html
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2013/10/reforma-protestante-do-seculo-xvi-ano_27.html
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2013/10/reforma-protestante-do-seculo-xvi-ano_31.html
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2012/10/sermao-para-o-dia-da-reforma-de-2012.html
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2012/10/a-reforma-protestante-do-seculo-xvi.html
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2012/10/entendendo-melhor-reforma-protestante_20.html
Espero que os mesmo possam te ajudar.
Abraço fraterno,
irmão Alex.