Luiza Brunet apresentou queixa
contra o bilionário Lirio Parisotto ao MP de SP
O artigo abaixo foi publicado
pelo site da Revista CartaCapital e é de autoria Marsílea Gombata.
Mulheres,
entre o amor e a morte
Relações que começam com brigas e
terminam em agressão física vitimam cada vez mais brasileiras
por Marsílea Gombata
G., de 37 anos, é casada há 19
com um homem que não reconhece mais. Distante do namorado carinhoso que a levou
a sonhar com uma vida a dois, hoje ele mantém um tom cada vez mais agressivo,
ofendendo-a com frequência e xingando-a de burra em público.
Ela bebe para aplacar a dor, mas
sabe que, se nada mudar, nem suas duas filhas serão capazes de fazê-la
suportar. F., de 45 anos, casada há 25, deu-se conta há pouco de que sofre de
violência psicológica praticada pelo próprio companheiro.
Ela sente-se aprisionada, mas tem
dificuldade em sair do casamento quando o marido mostra um lado carinhoso.
Sente raiva por amar uma pessoa que não a merece. E sabe que, se não sair a
tempo dessa relação abusiva, morrerá em breve, seja por assassinato, seja por
suicídio.
Os depoimentos acima dizem
respeito a casos reais de mulheres vítimas de violência, cada vez mais comum no
Brasil. As exposições das vivências foram relatadas na plataforma de auxílio
Minha Voz e são parte de uma realidade inquietante no Brasil.
Em 2015, a Central de Atendimento
à Mulher – Ligue 180 recebeu de 76.651 relatos de violência contra a mulher, ou
seja, uma média de 210 denúncias por dia. Desse total, 50,61% dizem respeito à
violência física, cujos relatos cresceram 44,74%.
Tipo de agressão que acomete uma
em cada três mulheres no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde
(OMS), a violência física voltou às manchetes nas últimas semanas depois que a
modelo e atriz Luiza Brunet veio a público denunciar ter sido agredida, com
direito a costelas quebradas, pelo marido Lirio Parisotto, um dos 600 homens
mais ricos do mundo, com uma fortuna superior a 1,2 bilhão de dólares, segundo
a Forbes Brasil.
Além disso, administra um fundo
de investimento, é dono da RBS Santa Catarina, da Videolar, o principal
acionista das Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc), e segundo suplente
do senador Eduardo Braga (PMDB-AM).
Luiza, que no mês anterior
postava nas redes sociais uma foto com a legenda: “A maquiagem esconde o
hematoma da alma”, como embaixadora do Instituto Avon na campanha #FaleSemMedo
(de combate à violência contra a mulher), fez uma queixa ao Grupo de Atuação
Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público
de São Paulo, na qual apresentou exames médicos e mais de 20 imagens de
hematomas para provar que fora agredida pelo companheiro em 21 de maio em Nova
York. Parisotto, que lamenta “versões distorcidas” do episódio ocorrido na
intimidade, está proibido de se aproximar da vítima.
A exposição de Luiza ocorreu na
mesma semana em que um menino de 11 anos utilizou o Facebook para denunciar o
próprio pai como agressor da mãe. Ele publicou uma foto da mãe, Fabiane
Boldrini, com o rosto ensanguentado depois de ter sido espancada pelo militar
Joel Jorge.
“Ela é vítima dele por muitos
anos. Ele fraturou o nariz dela com um soco, porque ela disse que não queria
mais viver com ele, aguentando tudo”, desabafou o garoto.
Assim como Fabiane, cerca de um
terço das mulheres já estiveram em uma relação afetiva na qual vivenciaram
alguma forma de violência física ou sexual por seus parceiros, segundo
estatística da ONU Mulheres – a entidade das Nações Unidas que vigia os atos
que atentam contra a população feminina. Companheiros, namorados e maridos são
autores de 38% dos feminicídios cometidos em todo o mundo.
O tipo de homicídio qualificado
ganhou legislação própria no Brasil, sancionada em 2015 pela presidenta Dilma
Rousseff. A Lei do Feminícidio altera o código penal para prever o assassinato
de uma mulher, pelo fato de ela ser mulher, como um tipo de homicídio
qualificado e incluí-lo no rol de crimes hediondos.
Maria da Penha
Maria da Penha levou à OEA a
tentativa de homicídio que sofreu pelo ex-marido (Foto: José Leomar)
Ou seja, está sujeito às regras
do júri popular. A pena, que aumenta de 6 a 12 anos para 12 a 30 anos de
prisão, pode ter um acréscimo de um terço, caso o crime ocorra durante a
gestação ou nos três meses posteriores ao parto; quando for contra menores de
14 anos ou maiores de 60; na presença de um descendente ou ascendente da
vítima.
No levantamento Mortalidade de
Mulheres por Agressões no Brasil: Perfil e estimativas corrigidas (2011-2013),
o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta 17.581 óbitos por
agressões no período.
Foram 5.860 mortes de mulheres
por causas violentas a cada ano, 488 a cada mês, 16,06 a cada dia, ou uma a
cada hora e meia. O estudo confirmou que a mortalidade por agressões atinge
mulheres de todas as faixas etárias, etnias e níveis de escolaridade, e não
ocorre apenas nas classes mais pobres.
Coautora do estudo, Leila
Posenato Garcia conta que, em 2013, uma das funcionárias do órgão, então
subordinado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República,
morreu em decorrência de agressões feitas pelo marido Anderson Batista Soares.
Marcela Aragão apareceu algumas
vezes com hematomas no rosto, mas buscava disfarçar. A falta de coragem para
denunciar abriu espaço para que mais agressões ocorressem e culminassem com
cárcere privado e espancamento até a morte na frente do filho do casal, à época
com pouco mais de 1 ano de idade.
“Á época, o caso não foi tratado
como feminicídio, e brigamos muito em audiências na Câmara para que a lei
contra esse crime fosse aprovada”, conta Leila, ao ressaltar que o caso de
Marcela tem um ciclo típico: discussões com violência psicológica ou moral cada
vez mais frequentes que deságuam em violência física, quando não em morte.
“Sabemos que a lei não prevenirá
a violência, mas pode responsabilizar os agentes pelo homicídio tipificado. Se
o caso ocorresse depois da aprovação da legislação, esse homem ao menos estaria
preso. É uma agressão que não termina com a morte da mulher, mas deixa sequelas
na família inteira.”
Dados do Mapa da Violência 2015
mostram que entre 2003 e 2013 o número de vítimas do sexo feminino mortas
cresceu 21%, passando de 3.937 para 4.762 em todo o País. Além das cifras
alarmantes que a Lei do Feminicídio busca reverter, as mulheres vítimas de
agressão são amparadas pela Lei Maria da Penha, legislação que busca combater a
violência doméstica, batizada em homenagem à farmacêutica bioquímica Maria da
Penha, que em maio de 1983 sofreu tentativa de homicídio por Marco Antonio
Viveros, seu marido e pai de suas três filhas.
O caso, que ficou sem solução por
15 anos e a deixou paraplégica, foi então levado para a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela vítima e
as ONGs Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da
Mulher (Cladem) e o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil).
Em 2001, a comissão
responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à
violência doméstica contra as mulheres. E em outubro de 2002, faltando seis
meses para o crime prescrever, Viveros foi preso. Cumpriu um terço da pena e
hoje está em liberdade.
“No meu caso, nem pude denunciar,
porque não havia nenhum aparato para ajudar as vítimas”, afirma Maria da Penha,
hoje com de 71 anos, ao lembrar que a própria Delegacia da Mulher (atualmente
com 499 unidades no País) foi criada em 1985, dois anos depois do tiro que a
condenou à cadeira de rodas.
“Nada garantia que a mulher que
denunciasse não fosse sofrer mais violência, pelo contrário. Ou o agressor não
aceitava a separação e podia agredi-la ainda mais, ou essa mulher escutava:
‘Ruim com ele, pior sem ele’; ‘mulher desquitada não tem valor’; ‘por que você
não consegue equilibrar o seu casamento?’”
Apesar de dar conta de casos de
violência doméstica e não cobrir aqueles que ocorrem fora da esfera
afetivo-familiar, a lei sancionada em 7 de agosto de 2006 é um avanço que surge
em resposta à fraca postura do Estado brasileiro quanto à impunidade nesses
casos, mais comuns do que se imagina.
De acordo com a Secretaria de
Política de Mulheres (SPM), em 72% dos casos atendidos em 2015 os agressores
eram homens com quem as vítimas se relacionavam ou já haviam tido algum vínculo
afetivo. No País, uma em cada três mulheres sofre algum tipo de violência, seja
física, psicológica, moral, sexual, seja patrimonial, mas apenas 6% denunciam.
O fato de o agressor ser alguém
conhecido – como no episódio Brunet-Parisotto – é, muitas vezes, um grande
desestímulo à mulher fazer a denúncia. Muitas sentem-se desencorajadas a falar
com medo de retaliações ou mesmo envergonhadas por não conseguir livrar-se de
um círculo vicioso.
Como forma de encorajar as vítimas,
a plataforma Minha Voz coleta e reúne depoimentos anônimos (como os publicados
no início desta reportagem), auxilia as vítimas a procurar ajuda e informa
sobre leis e instituições para ampará-las.
“O Minha Voz nasce da percepção
desse impasse. Muitas vezes, a mulher em uma situação dessas demora muito tempo
para se reconhecer nesse lugar e compreender que também foi vítima de
violência”, explica a psicóloga Daniela Silveira Rozados, idealizadora da
ferramenta ao lado de Salete Silva Farias, do Instituto Federal do Maranhão.
“Existe um aspecto cultural,
social, mas também um elemento psíquico. Quando essas relações se estabelecem
de modo abusivo, tornam-se difíceis de ser rompidas. São relações complicadas,
muito ambíguas.”
Apesar de não deixar marcas como
a agressão física, a violência psicológica (expressa em constrangimento,
insulto e vigilância constante), a violência moral (contra a honra e a
dignidade da vítima) e a violência patrimonial (entendida como a subtração dos
seus bens e recursos econômicos) são consideradas graves violações dos direitos
fundamentais das mulheres e consideradas pela OMS como a forma mais presente de
agressão à mulher dentro da família. A sua sistematização e naturalização são
vistas como estímulos a uma espiral de violências dentro do núcleo familiar.
Além dos 38.451 (50,15% do total)
casos de violência física recebidos no ano passado pela Central de Atendimento
à Mulher, houve 23.247 relatos de violência psicológica (30,33%), 5.556 de
violência moral (7,25%), 3.961 relatos de cárcere privado (5,17%), 3.478
relatos de violência sexual (4,54%), 1.607 relatos de violência patrimonial
(2,10%) e 351 relatos de tráfico de pessoas (0,46%).
A pesquisa Avaliando a
Efetividade da Lei Maria da Penha, publicada em 2015 pelo Ipea, ressalta que a
lei contribuiu para diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra
mulheres dentro de casa e lembra: a violência doméstica ocorre em ciclos, “onde
muitas vezes há um acirramento no grau de agressividade envolvida” que pode
resultar na morte do cônjuge.
“A violência contra as mulheres
está amparada no machismo, no qual os homens se consideram com poder sobre
vidas e corpos das mulheres, amparado na reprodução de estereótipos que
naturalizam a violência, por meio da publicidade, veículos de comunicação,
educação e práticas culturais”, observa Corina Rodríguez Enríquez, economista
feminista do comitê executivo do Development Alternatives With Women For a New
Era (DAWN).
“São dinâmicas fortemente
arraigadas na sociedade, e desconstruir essas visões requer múltiplas
intervenções. Nós, mulheres, temos a obrigação de não deixar passar nenhum ato
de violência sem expô-lo ou denunciá-lo. Dos mais simples assédios na rua aos
mais terríveis feminicídios, é necessário mostrar que a violência não é
natural, mas resultado de relações socialmente construídas, que implicam desde
a subordinação das mulheres até as formas mais extremas de violência e morte.”
A arraigada cultura do machismo
confere ao Brasil, entre 83 países, um constrangedor quinto lugar no Mapa da
Violência. Fica atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. No
mundo todo, aliás, o ultraje diante de tal situação tem produzido vigorosas
manifestações de rua, mobilização da sociedade mais esclarecida – inclusive
homens – e medidas de efeito prático.
Pelo menos 119 países dispõem
hoje de leis específicas contra a violência doméstica, 125 têm instrumentos
legais para penalizar o assédio sexual e 52 nações se acautelam juridicamente
para defender as vítimas de estupro marital. Ainda assim suspeita-se que em
certos países o número de mulheres que sofreram algum tipo de violência física
e/ou sexual do parceiro possa chegar a 70%.
Grandes marchas aconteceram, nos
últimos meses, na banlieu de Paris, onde as imigrantes do Norte da África, em
especial, padecem dos abusos de seus companheiros, em Madri, com o apoio de 350
diferentes entidades e dos partidos de esquerda PSOE, Podemos e Esquerda Unida
(1.392 mulheres foram assassinadas na Espanha nos últimos 20 anos) e, em Londres,
a passeata convocada pelo movimento Million Women Rise encheu de bandeiras e
gritos a Trafalgar Square, em março.
No ano passado, duas tragédias
sacudiram a passividade das mulheres argentinas. O corpo de uma garota de 14
anos foi descoberto no subsolo da casa do namorado dela, na cidade de Rufino,
província de Santa Fé. Descobriu-se que Chiara Paez estava grávida.
Foi agredida pelo namorado até
morrer. Um mês antes, Maria Eugenia Lanzetti, professora de 44 anos do curso
elementar, em Córdoba, viu o marido irromper na sala de aula e quebrar o seu
pescoço diante das crianças. Foram duas das 77 vítimas de feminicídio na
Argentina em 2015.
Uma situação tristemente irônica
aconteceu na estreia londrina de Suffragette, dirigido por Sarah Gavron. O
filme rememora a saga das feministas avant la lettre do início do século XX, as
quais, ainda que ridicularizadas pela mídia e pelo establishment, saíram às
ruas em prol de direitos iguais – a começar por aquele de votar.
Ativistas do Sisters Uncut
deitaram-se no tapete vermelho da Leicester Square para lembrar que, um século
depois, a luta ainda não terminou. Foram brutalmente retiradas dali por
musculosos leões de chácara do sexo masculino.
*Reportagem publicada
originalmente na edição 909 de CartaCapital, com o título "Entre o amor e
o ódio"
O artigo original poderá ser
visto por meio do seguinte link:
Que Deus tenha misericórdia do
Brasil, uma nação de machsitas covardes e
assassinos.
Alexandros Meimaridis
PS.
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