quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A COBERTURA MANIPULADA DO ENEM PELA MÍDIA


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O artigo abaixo é do professor Wilson Roberto Vieira Ferreira.


A cobertura midiática do Enem: muito além do "fact-checking"
Wilson Roberto Vieira Ferreira

Até 2015, o Enem era noticiado pela grande mídia como “eleiçoeiro” e “populista”, uma “fogueira” (a “fogueira do Enem”) na qual os alunos viviam assustados e lesados com sucessivas denúncias de fraude e desorganização. A partir do ano passado, tudo mudou como num passe de mágica: agora é o “Enem nota 1.000” para aqueles alunos mais “focados e determinados” no qual fraudes são problemas pontuais tecnicamente resolvidas, sem mais o protagonismo do Judiciário. Depois de anos do jornalismo de guerra no esgoto, a grande mídia tenta recuperar o seu produto tão vilipendiado: a notícia. Enquanto joga ao mar antigos líderes como o jornalista William Waack para recuperar uma suposta isenção, apoia agências de “fact-checking” para se prevenir das “fake news” que ela própria inventou. Mas pela sua missão de salvar as aparências, o “fact-checking” ignora as mudanças do viés atribuídos aos fatos ao longo do tempo, de acordo com a mudança do contexto. A mudança da cobertura midiática dada ao Enem de 2009 a 2017 é um caso exemplar: a mentira não está apenas no ocultamento ou na invenção – está na angulação, seleção e edição.

O episódio em que William Waack, fiel soldado dos tempo do jornalismo de guerra, foi jogado prontamente ao mar pela Globo depois do vazamento de um vídeo no qual o jornalista fazia galhofas racistas é apenas mais um capítulo do refluxo na grande mídia, depois de anos de jornalismo de esgoto e promoção do ódio como matéria prima do mercado de opiniões.

Nesse momento a mídia corporativa quer jogar fora os anéis para permanecer os dedos – foi por muito tempo um partido de oposição política e esqueceu que, afinal, vende uma mercadoria chamada notícia. Um produto seriamente violentado durante a cavalgada que culminou no impeachment de 2016.

Agora em parcerias com a grande mídia como Folha e Globo surgem agências especializadas em fact-checking, checagem das notícias para a prevenção contra as “fake news”. Mais uma vez a mídia corporativa tenta se isentar dos seus pecados jogando a bucha das notícias falsas nas costas dos blogs, redes sociais e na campanha eleitoral de Donald Trump – e ocasionalmente em hackers russos e na própria figura de Putin.

Se essas agências estão assim tão comprometidas com a “verificação sistemática do grau de veracidade das informações que circulam no País”, como orgulhosamente declara a Lupa, então deveriam acrescentar mais uma “ferramenta” a sua “plataforma”: o Jornalismo Comparado.

Não confunda com a clássica disciplina do currículo básico dos cursos superiores de Jornalismo – a comparação das diferentes tendências e condições de produção, circulação e consumo de notícias no mundo. Aqui temos uma abordagem sincrônica do Jornalismo – diferentes sistemas comparados  num momento específico.

Com outro tipo de Jornalismo Comparado, diacrônico, teríamos um estudo da cobertura jornalística através do tempo: perceber os diferentes vieses (angulação, seleção, edição) na cobertura de um mesmo evento em diferentes contextos políticos e econômicos.

“Checadores” e o Jornalismo Comparado

Certamente os “checadores” (nova e surpreendente especialidade dentro do Jornalismo cujo exercício da “checagem” deveria ser a rotina primária da profissão) ficariam surpresos: a notícia não se resume apenas à informação (a transitividade entre notícia e realidade). É também Comunicação – as diferentes interpretações que a grande mídia faz de um mesmo evento em contextos diferentes.

Um bom ponto de partida para os neófitos “checadores” seria fazer uma comparação entre a cobertura dada ao Enem no período do jornalismo de guerra entre 2009-2016 e a cobertura dada desde o ano passado, contexto no qual a mídia corporativa retorna às sua funções em tempos “de paz” após a missão cumprida do impeachment: comercial (prestação de serviço) e ideológica (conectar educação e meritocracia).

Enem e a cobertura monofásica da grande mídia

O Exame Nacional de Ensino Médio, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inesp), foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino médio. Mas a partir de 2009 foi universalizado por meio da unificação dos vestibulares federais – mudou a face dos vestibulares do País ao democratizar o acesso de estudantes à melhores universidades.

Desde então, o Enem transformou-se numa instituição que mudou o ensino superior, junto com a expansão das universidades privadas e públicas.

Porém, o viés da grande mídia desde então foi monofásico: a bateção na tecla de que o Enem era “eleiçoeiro” e “populista” (transformar um conceito substantivo como “democratização” em uma sequência metonímica de adjetivos), frustrante para os estudantes com a sucessiva cadeia de vazamentos de provas e fraudes (uma delas envolvendo uma gráfica que tinha a Folha como sócia... hummm!!!...) e desorganizando os vestibulares já estabelecidos pela ausência de qualquer racionalidade administrativa.


Mesmo dando apenas uma olhada superficial nas primeiras páginas dos jornais desse período, dá para perceber: o Enem era reprovado por Juízes, os estudantes frustrados pela má gestão do processo e um sistema essencialmente criminógeno com as sucessivas denúncias de fraudes e desorganização.

Nos telejornais o foco eram nas reclamações de “muitos estudantes” por não poderem usar relógio, lápis e borracha. “Novas regras que deixam estudantes tensos”, dizia uma edição do JN da Globo em 2010.

“Matérias que assustam os alunos”, “um exame longo e cansativo para todo mundo”, “dificuldades para fazer a redação” era o viés do JN de 27/10/2014.

“MEC elimina candidata errada por foto postada em sala do Enem – ela ficou em estado de choque”; “Hacker tenta invadir site com notas do Enem”, “Grupo critica a correção da redação” eram tipos de manchetes corriqueiras em sites como G1 e Uol em 2012.

Mas é nos slides-show desses sites que o viés se cristaliza na cobertura fotográfica: estudantes correndo diante do portão que fecha, rostos preocupados e tensos, um estudante se arrasta por baixo de uma porta que está baixando, e as onipresentes grades e ferros como fundo dos closes em alunos criando uma atmosfera de tensão e prisão.


Poucos sorrisos, estudantes cabisbaixos e sentados no meio fio ou pelos cantos de muros. Há uma atmosfera de dispersão e desordem, com estudantes figurados isolados e com olhares perdidos para um ponto qualquer.

Em linhas gerais, simplesmente a grande mídia ignorou a principal notícia que deveria ser “checada” e investigada – Enem democratiza o acesso ao ensino superior? Ficou apenas nas angulação sobre o estudante (estressado e angustiado) e o sistema (precário, mal gerido, vulnerável e criminógeno).

No lugar preferiu apresentar o ranking da melhores e piores escolas (e no caso da Folha, reforçando a ideia de fosso entre o desempenho do Sudeste e Nordeste) ou mostrar estudantes tentando escalar portões fechados e gritando “Eu odeio o Enem!” – aliás, muitos deles eram universitários que se faziam passar por secundaristas para “aparecer na mídia” e viralizar nas redes sociais, na falta de coisa melhor para fazer – veja matéria por  meio desse link aqui:

Enem nota 1.000”

A partir de 2016 (com a missão cumprida do impeachment reconduzindo o País à “normalidade”) a mídia corporativa percebeu que o Enem já estava consolidado e que deveria ser inserido em uma outra narrativa: a da meritocracia num contexto de crise econômica e desemprego no qual apenas os melhores sobreviverão.

A “retranca” da cobertura muda: vira o “Enem nota 1.000” para a Folha, concentrado em relatos de estudantes bem sucedidos com metodologias de estudos exemplares.


A angulação da cobertura deixa de ser monofásica para se transformar num tripé: o estudante (autoconfiante, a autoestima etc.), o sistema (os problemas de fraudes agora são pontuais, em geral restritos a cidades interioranas) e o propósito do Enem, com um maroto deslocamento: do objetivo da democratização do acesso ao ensino superior (populista para a grande mídia), para a narrativa da meritocracia – o Enem como mais um processo seletivo no qual somente os melhores (os mais focados e determinados) passarão.

Se no passado a pauta era negativa (“rachar de estudar”, “aluno estressado”, “fogueira do Enem” etc.), a partir do ano passado tudo mudou: “estudante desafia a fogueira do Enem”, “Com bom humor estudante vai ao Enem”, “véspera de Enem é dia de descanso e relaxamento”.

Dessa vez notícias de que mais ônibus serão colocados nas ruas em dias de provas para evitar que alunos encontrem portões fechados nos locais das provas são destacadas e as tradicionais imagens de alunos chorando e escalando grades sumiram ou, no mínimo, ficaram restritas a eventos pitorescos.

Telejornais e portais na Internet deixaram de priorizar denúncias, fraudes e protagonismo de juízes e procuradores para se concentrar no serviço aos alunos: técnicas de estudos, revisões de conteúdos, dicas de relaxamento.


UOL: 05/11/2017

E a cobertura fotográfica mudou radicalmente o enfoque: agora vemos multidões de alunos organizados entrando nos locais de provas (contrastando com alunos caminhando dispersos e isolados do passado) e estudantes posando sorridentes sem mais ter as onipresentes grades e portões de ferro como fundo.

O curioso é que, mesmo quando mostra os tradicionais alunos retardatários correndo para passar pela fresta do portão que fecha, eles estão sorridentes.

Mas o principal viés é a substituição da função democratizadora do Enem pelo ideário meritocrático das provas como mais um processo seletivo como tantos outros pelos quais o jovem passará na vida.

Dessa vez a grande mídia encaixa o Enem no contexto das atuais reformas e flexibilizações que reciclam os milhões de desempregados em empreendedores que aguardam o momento em que a força de trabalho vai se converter em capital, virando o ex-assalariado em capitalista de si mesmo.

Agora o Enem cumpre uma estrita função ideológica: narrativa individualista do sucesso – diante do fracasso, a culpa sempre será do indivíduo que não teve vontade, foco etc. suficientes.

Para os neófitos “checadores”, um pequeno quadro de resumo desse nosso rápido exercício comparativo:

Jornalismo de guerra (grande mídia como principal partido de oposição


Enem /
Viés:
O Estudante
O Sistema
Objetivo
Contexto
2009-2015

Estressado, desmotivado, assustado, lesado

Criminogeno com protagonismo de juízes e promotores

Ranking das melhores escolas ao invés da democratização do ensino superior


Jornalismo de guerra (grande mídia como principal partido de oposição

2016-2017

Relaxado, autoconfiante, autoestima

Fraudes pontuais e tecnicamente resolvidas sem protagonismo do Judiciário


Meritocracia, empreendedorismo individualismo

Pós-impeachment: notícia como produto (prestação de serviço e função ideológica)


É claro que isso é um exercício comparativo ainda preliminar, carecendo de uma quantificação textual (manchetes e espaço ocupado pelas matérias) e icônica (conotação das fotografias e Gestalt do espaço dessas matérias na mancha gráfica de uma publicação ou site.
 Bom, isso seria o trabalho do desenvolvimento de uma nova ferramenta diacrônica (Jornalismo Comparado), ao lado do trabalho sincrônico do fact-cheking.

Restrita à checagem (a existência de transitividade entre informação e fato), o fact-checking perde a dimensão histórica: as diversas “transitividades” (vieses, interpretações etc.) que um mesmo fato teve ao longo do tempo em diversos veículos.

O artigo original pode ser acessado por meio do link abaixo:

http://cinegnose.blogspot.com.br/2017/11/a-cobertura-midiatica-do-enem-muito.html

Que Deus tenha misericórdia de todos nós e nos ajude a entender as múltiplas manipulações que sofremos a cada dia.

Alexandros Meimaridis.

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