O artigo abaixo é do professor
Wilson Roberto Vieira Ferreira.
A cobertura midiática
do Enem: muito além do "fact-checking"
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Até 2015, o Enem era noticiado
pela grande mídia como “eleiçoeiro” e “populista”, uma “fogueira” (a “fogueira
do Enem”) na qual os alunos viviam assustados e lesados com sucessivas
denúncias de fraude e desorganização. A partir do ano passado, tudo mudou como
num passe de mágica: agora é o “Enem nota 1.000” para aqueles alunos mais
“focados e determinados” no qual fraudes são problemas pontuais tecnicamente
resolvidas, sem mais o protagonismo do Judiciário. Depois de anos do jornalismo
de guerra no esgoto, a grande mídia tenta recuperar o seu produto tão
vilipendiado: a notícia. Enquanto joga ao mar antigos líderes como o jornalista
William Waack para recuperar uma suposta isenção, apoia agências de
“fact-checking” para se prevenir das “fake news” que ela própria inventou. Mas
pela sua missão de salvar as aparências, o “fact-checking” ignora as mudanças
do viés atribuídos aos fatos ao longo do tempo, de acordo com a mudança do
contexto. A mudança da cobertura midiática dada ao Enem de 2009 a 2017 é um
caso exemplar: a mentira não está apenas no ocultamento ou na invenção – está
na angulação, seleção e edição.
O episódio em que William Waack,
fiel soldado dos tempo do jornalismo de guerra, foi jogado prontamente ao mar
pela Globo depois do vazamento de um vídeo no qual o jornalista fazia galhofas
racistas é apenas mais um capítulo do refluxo na grande mídia, depois de anos
de jornalismo de esgoto e promoção do ódio como matéria prima do mercado de
opiniões.
Nesse momento a mídia corporativa
quer jogar fora os anéis para permanecer os dedos – foi por muito tempo um
partido de oposição política e esqueceu que, afinal, vende uma mercadoria
chamada notícia. Um produto seriamente violentado durante a cavalgada que
culminou no impeachment de 2016.
Agora em parcerias com a grande
mídia como Folha e Globo surgem agências especializadas em fact-checking,
checagem das notícias para a prevenção contra as “fake news”. Mais uma vez a
mídia corporativa tenta se isentar dos seus pecados jogando a bucha das
notícias falsas nas costas dos blogs, redes sociais e na campanha eleitoral de
Donald Trump – e ocasionalmente em hackers russos e na própria figura de Putin.
Se essas agências estão assim tão
comprometidas com a “verificação sistemática do grau de veracidade das
informações que circulam no País”, como orgulhosamente declara a Lupa, então
deveriam acrescentar mais uma “ferramenta” a sua “plataforma”: o Jornalismo
Comparado.
Não confunda com a clássica
disciplina do currículo básico dos cursos superiores de Jornalismo – a comparação
das diferentes tendências e condições de produção, circulação e consumo de
notícias no mundo. Aqui temos uma abordagem sincrônica do Jornalismo –
diferentes sistemas comparados num
momento específico.
Com outro tipo de Jornalismo
Comparado, diacrônico, teríamos um estudo da cobertura jornalística através do
tempo: perceber os diferentes vieses (angulação, seleção, edição) na cobertura
de um mesmo evento em diferentes contextos políticos e econômicos.
“Checadores” e o
Jornalismo Comparado
Certamente os “checadores” (nova
e surpreendente especialidade dentro do Jornalismo cujo exercício da “checagem”
deveria ser a rotina primária da profissão) ficariam surpresos: a notícia não
se resume apenas à informação (a transitividade entre notícia e realidade). É
também Comunicação – as diferentes interpretações que a grande mídia faz de um
mesmo evento em contextos diferentes.
Um bom ponto de partida para os
neófitos “checadores” seria fazer uma comparação entre a cobertura dada ao Enem
no período do jornalismo de guerra entre 2009-2016 e a cobertura dada desde o
ano passado, contexto no qual a mídia corporativa retorna às sua funções em
tempos “de paz” após a missão cumprida do impeachment: comercial (prestação de
serviço) e ideológica (conectar educação e meritocracia).
Enem e a cobertura
monofásica da grande mídia
O Exame Nacional de Ensino Médio, realizado pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais (Inesp), foi criado em 1998 com o objetivo de
avaliar a qualidade do ensino médio. Mas a partir de 2009 foi universalizado
por meio da unificação dos vestibulares federais – mudou a face dos
vestibulares do País ao democratizar o acesso de estudantes à melhores
universidades.
Desde então, o Enem
transformou-se numa instituição que mudou o ensino superior, junto com a
expansão das universidades privadas e públicas.
Porém, o viés da grande mídia
desde então foi monofásico: a bateção na tecla de que o Enem era “eleiçoeiro” e
“populista” (transformar um conceito substantivo como “democratização” em uma
sequência metonímica de adjetivos), frustrante para os estudantes com a
sucessiva cadeia de vazamentos de provas e fraudes (uma delas envolvendo uma
gráfica que tinha a Folha como sócia... hummm!!!...) e desorganizando os
vestibulares já estabelecidos pela ausência de qualquer racionalidade
administrativa.
Mesmo dando apenas uma olhada
superficial nas primeiras páginas dos jornais desse período, dá para perceber:
o Enem era reprovado por Juízes, os estudantes frustrados pela má gestão do
processo e um sistema essencialmente criminógeno com as sucessivas denúncias de
fraudes e desorganização.
Nos telejornais o foco eram nas
reclamações de “muitos estudantes” por não poderem usar relógio, lápis e
borracha. “Novas regras que deixam estudantes tensos”, dizia uma edição do JN
da Globo em 2010.
“Matérias que assustam os alunos”,
“um exame longo e cansativo para todo mundo”, “dificuldades para fazer a
redação” era o viés do JN de 27/10/2014.
“MEC elimina candidata errada por
foto postada em sala do Enem – ela ficou em estado de choque”; “Hacker tenta
invadir site com notas do Enem”, “Grupo critica a correção da redação” eram
tipos de manchetes corriqueiras em sites como G1 e Uol em 2012.
Mas é nos slides-show desses
sites que o viés se cristaliza na cobertura fotográfica: estudantes correndo
diante do portão que fecha, rostos preocupados e tensos, um estudante se
arrasta por baixo de uma porta que está baixando, e as onipresentes grades e
ferros como fundo dos closes em alunos criando uma atmosfera de tensão e
prisão.
Poucos sorrisos, estudantes
cabisbaixos e sentados no meio fio ou pelos cantos de muros. Há uma atmosfera
de dispersão e desordem, com estudantes figurados isolados e com olhares
perdidos para um ponto qualquer.
Em linhas gerais, simplesmente a
grande mídia ignorou a principal notícia que deveria ser “checada” e
investigada – Enem democratiza o acesso ao ensino superior? Ficou apenas nas
angulação sobre o estudante (estressado e angustiado) e o sistema (precário,
mal gerido, vulnerável e criminógeno).
No lugar preferiu apresentar o
ranking da melhores e piores escolas (e no caso da Folha, reforçando a ideia de
fosso entre o desempenho do Sudeste e Nordeste) ou mostrar estudantes tentando
escalar portões fechados e gritando “Eu odeio o Enem!” – aliás, muitos deles
eram universitários que se faziam passar por secundaristas para “aparecer na
mídia” e viralizar nas redes sociais, na falta de coisa melhor para fazer – veja
matéria por meio desse link aqui:
Enem nota 1.000”
A partir de 2016 (com a missão
cumprida do impeachment reconduzindo o País à “normalidade”) a mídia
corporativa percebeu que o Enem já estava consolidado e que deveria ser
inserido em uma outra narrativa: a da meritocracia num contexto de crise
econômica e desemprego no qual apenas os melhores sobreviverão.
A “retranca” da cobertura muda:
vira o “Enem nota 1.000” para a Folha, concentrado em relatos de estudantes bem
sucedidos com metodologias de estudos exemplares.
A angulação da cobertura deixa de
ser monofásica para se transformar num tripé: o estudante (autoconfiante, a
autoestima etc.), o sistema (os problemas de fraudes agora são pontuais, em
geral restritos a cidades interioranas) e o propósito do Enem, com um maroto
deslocamento: do objetivo da democratização do acesso ao ensino superior
(populista para a grande mídia), para a narrativa da meritocracia – o Enem como
mais um processo seletivo no qual somente os melhores (os mais focados e
determinados) passarão.
Se no passado a pauta era
negativa (“rachar de estudar”, “aluno estressado”, “fogueira do Enem” etc.), a
partir do ano passado tudo mudou: “estudante desafia a fogueira do Enem”, “Com
bom humor estudante vai ao Enem”, “véspera de Enem é dia de descanso e
relaxamento”.
Dessa vez notícias de que mais
ônibus serão colocados nas ruas em dias de provas para evitar que alunos
encontrem portões fechados nos locais das provas são destacadas e as
tradicionais imagens de alunos chorando e escalando grades sumiram ou, no
mínimo, ficaram restritas a eventos pitorescos.
Telejornais e portais na Internet
deixaram de priorizar denúncias, fraudes e protagonismo de juízes e
procuradores para se concentrar no serviço aos alunos: técnicas de estudos,
revisões de conteúdos, dicas de relaxamento.
UOL: 05/11/2017
E a cobertura fotográfica mudou
radicalmente o enfoque: agora vemos multidões de alunos organizados entrando
nos locais de provas (contrastando com alunos caminhando dispersos e isolados
do passado) e estudantes posando sorridentes sem mais ter as onipresentes
grades e portões de ferro como fundo.
O curioso é que, mesmo quando
mostra os tradicionais alunos retardatários correndo para passar pela fresta do
portão que fecha, eles estão sorridentes.
Mas o principal viés é a
substituição da função democratizadora do Enem pelo ideário meritocrático das
provas como mais um processo seletivo como tantos outros pelos quais o jovem
passará na vida.
Dessa vez a grande mídia encaixa
o Enem no contexto das atuais reformas e flexibilizações que reciclam os
milhões de desempregados em empreendedores que aguardam o momento em que a força
de trabalho vai se converter em capital, virando o ex-assalariado em
capitalista de si mesmo.
Agora o Enem cumpre uma estrita
função ideológica: narrativa individualista do sucesso – diante do fracasso, a
culpa sempre será do indivíduo que não teve vontade, foco etc. suficientes.
Para os neófitos “checadores”, um
pequeno quadro de resumo desse nosso rápido exercício comparativo:
Jornalismo de guerra (grande
mídia como principal partido de oposição
Viés:
|
O Estudante
|
O Sistema
|
Objetivo
|
Contexto
|
2009-2015
|
Estressado, desmotivado, assustado, lesado
|
Criminogeno com protagonismo de juízes e promotores
|
Ranking das melhores escolas ao invés da democratização do ensino superior
|
Jornalismo de guerra (grande mídia como principal partido de oposição
|
2016-2017
|
Relaxado, autoconfiante, autoestima
|
Fraudes pontuais e tecnicamente resolvidas sem protagonismo do Judiciário
|
Meritocracia, empreendedorismo individualismo
|
Pós-impeachment: notícia como produto (prestação de serviço e função ideológica)
|
É claro que isso é um exercício
comparativo ainda preliminar, carecendo de uma quantificação textual (manchetes
e espaço ocupado pelas matérias) e icônica (conotação das fotografias e Gestalt
do espaço dessas matérias na mancha gráfica de uma publicação ou site.
Bom, isso seria o trabalho do desenvolvimento
de uma nova ferramenta diacrônica (Jornalismo Comparado), ao lado do trabalho
sincrônico do fact-cheking.
Restrita à checagem (a existência
de transitividade entre informação e fato), o fact-checking perde a dimensão
histórica: as diversas “transitividades” (vieses, interpretações etc.) que um
mesmo fato teve ao longo do tempo em diversos veículos.
O artigo original pode ser
acessado por meio do link abaixo:
http://cinegnose.blogspot.com.br/2017/11/a-cobertura-midiatica-do-enem-muito.html
Que Deus tenha misericórdia de
todos nós e nos ajude a entender as múltiplas manipulações que sofremos a cada
dia.
Alexandros Meimaridis.
PS.
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