O artigo abaixo foi
publicado no site do G1 e é de autoria de Stéfano Salles
CARNAVAL E RELIGIÃO:
A MISTURA ENTRE FÉ E FOLIA
Relação ganha força
após apoio da arquidiocese à Estácio de Sá
As mais variadas
religiões sempre fizeram parte do imaginário do carnaval - André Mello /
Editoria de Arte
POR
STÉFANO SALLES
RIO - As cores do
pavilhão carregado pela porta-bandeira, cortejada com elegância pelo
mestre-sala, são as mesmas do padroeiro. No início do carnaval carioca, era
possível reconhecer o orixá de cada agremiação apenas pelo ritmo do toque das
caixas da bateria. Nos ensaios da atualidade, os sons ainda estão presentes e
são comuns os pontos de umbanda e candomblé, entoados como proteção. As
tradições transformaram as escolas de samba em bastiões de resistência da
cultura africana, mas elas sempre se mantiveram abertas a fiéis de outros
credos. Uma convivência que nem sempre fez por merecer nota 10 em harmonia.
Carnavalesco
no xadrez
Proibida pela
Arquidiocese do Rio, escultura do Cristo Mendigo arrebatou o público no
carnaval de 1989, mesmo coberta por sacos de lixo - Arthur Cavalieri/7-2-1989 /
Agência O Globo
Católico fervoroso, o
carnavalesco Chico Spinosa não esquece o carnaval de 2000, quando uma escultura
de Nossa Senhora dos Navegantes o levou para o xadrez da 4ª DP (Central). A
imagem seria utilizada no desfile daquele ano, que tinha como enredo “Terra dos
Papagaios... navegar foi preciso!”, mas foi contestada judicialmente pela
Arquidiocese, que acusou o artista de vilipêndio de objeto de culto religioso.
— Foi uma loucura. A
sala onde fiquei tinha banco, cadeira, mas também grades. Eu fiquei em uma
cela! Saí duas horas depois, mas a escultura só foi liberada no dia seguinte,
levada pela bateria da escola, que seguiu em procissão até o barracão, na
Avenida Venezuela. Foi lindo — lembra Spinosa, crime com pena de um a 12 meses
de detenção e multa. A obra acabaria fora da festa.
A tumultuada relação
entre as escolas de samba e a Igreja Católica teve como clímax a proibição do
Cristo Mendigo de Joãosinho Trinta, no desfile da Beija-Flor, em 1989. Naquele
ano, o carnavalesco cobriu a escultura com sacos pretos e ela foi à avenida com
a inscrição: “Mesmo proibido, olhai por nós”, e ficou com o segundo lugar. No
desfile das campeãs, a escola tirou os plásticos e revelou a imagem, para
delírio do público.
Arena
de tradições
Baianas da Imperatriz
Leopoldinense no desfile das campeãs de 2011 - Fabio Rossi /12-03-2011 /
Agência O Globo
Além das referências
às religiões de matriz africana, as escolas de samba preservam elementos de sua
cultura, como o respeito à ancestralidade, visível na ala das baianas e na
velha guarda. Os segredos dos desfiles, os carnavalescos escondem a sete chaves
em seus barracões, como pais de santo que preservam do público não iniciado os
fundamentos da religião. Durante o carnaval, os templos não abrem: é o lorogun,
período de descanso que marca o início de um ano litúrgico.
Apesar de várias
composições anteriores fazerem referências diretas e indiretas à africanidade, a
primeira leva de sambas-enredo dedicados aos orixás e religiões do continente
surgiu em 1975, com a Unidos da Tijuca, que apresentou na avenida a “Magia
africana no Brasil e seus mistérios". No ano seguinte, o Império Serrano
apresentou o enredo "A lenda das sereias, rainhas do mar", e há quem
garanta que Iemanjá teria incorporado em diversos componentes da agremiação da
Serrinha durante o desfile, o que teria atrapalhado a evolução e proporcionado
um desfile mais lento. Professor da UFRJ respeitado nas áreas de pesquisa de
carnaval e religiosidade, Luiz Antônio Simas não duvida, mas acha improvável.
— É impossível dizer
se isso aconteceu, mas no carnaval há uma cultura de oralidade que propaga essas
coisas. É um espaço muito propenso para fantasias. Também há quem diga que
ocorreu algo semelhante com a Grande Rio em 1994, quando a escola fez uma
homenagem à umbanda, com "Os santos que a África não viu". Essas
histórias podem ser fruto da criatividade dos oradores, mas o certo é que,
atualmente, ninguém faz um enredo desses sem tomar cuidados e ouvir um pai de
santo — analisa.
Em
harmonia com o além
O pai de santo Osmane
d'Odé é diretor espiritual do Salgueiro e acompanha os trabalhos feitos na quadra
e no barracão da escola, na Cidade do Samba - Guilherme Leporace / Agência O
Globo
Mais do que acolher
foliões, as escolas buscam fomentar a pluralidade religiosa. Este ano, o
Salgueiro vai apresentar o enredo “A ópera dos malandros”, inspirado no
espetáculo de Chico Buarque, repleto de referências a Zé Pelintra, entidade
associada à boemia. Há dois anos, a escola tem um diretor espiritual: o pai de
santo Osmane d’Odé. Ele guia a presidente Regina Celi nos momentos de indecisão
e busca proteger a agremiação de turbulências.
—
Não tem mistério: eu sou uma espécie de conselheiro da presidente e busco
manter a escola equilibrada. Faço aconselhamento, banhos e ofereço ajuda
espiritual, tudo o que um pai de santo faz, mas as decisões cabem sempre à
presidente. O segredo está na simplicidade: não há o que inventar — ensina o
líder religioso, que acompanha os trabalhos na quadra da escola e na Cidade do
Samba.
A africanidade esteve
presente no último título do Salgueiro, em 2009, quando a vermelho e branco
contou a história do tambor.
O
padre cai no samba
Fanático pelo
Salgueiro, o padre Wagner Toledo desfila pela escola desde 2003 - Fabio Rossi /
Agência O Globo
Osmane não é a única
liderança espiritual respeitada no cotidiano do Salgueiro. O padre Wagner
Toledo, da Igreja Santa Rita, desfila pela agremiação religiosamente desde
2003, quando a diretoria buscava um padre salgueirense para celebrar a missa de
50 anos da escola. Antes do seminário ele era componente da agremiação e chegou
a duvidar da aptidão para a vida religiosa.
— Pensava: como posso
ser padre com essa paixão pelo carnaval? Mas a inclinação falou mais alto. No
seminário, não tinha televisão, rádio, nada para acompanhar os desfiles.
Algumas vezes eu recebi liberação para acompanhar a apuração. A ansiedade era
enorme — revela.
No início, a
participação do padre nos desfiles foi vista com desconfiança, superada com a
aproximação das personalidades do carnaval à igreja. Frequentemente, ele
realiza as missas de aniversário da escola e de São Sebastião, padroeiro do
Salgueiro, e de São Jorge, padroeiro da Estácio.
— Eu tenho
consciência de que ali não sou apenas eu mesmo: estou representando a minha
instituição. Então, ultimamente, tenho desfilado junto com a velha guarda.
Quando acaba minha participação, vou para o camarote. As pessoas me tratam como
padre mesmo: pedem bênçãos, beijam a minha mão e me afastam do tumulto —
afirma.
Assistente de Toledo,
Kenny Erik, de 21 anos, estuda para ser padre. Ele torcia pela Mocidade, mas
trocou de paixão.
— Sou Salgueiro. O
padre me converteu — garante.
Berço
de transformações
Enredo da Estácio
sobre São Jorge tem o aval da Arquidiocese do Rio, algo inédito no carnaval -
Antônio Scorza / Agência O Globo
A umbanda esteve
presente desde o início da Estácio de Sá. Em 1928, antes de fundar a Deixa
Falar, que daria origem ao Leão, documentos históricos revelam que Ismael Silva
teria consultado os orixás para a nova empreitada. A religião ainda goza de
prestígio na quadra da agremiação, com espaço dedicado a ela, no qual uma mãe
de santo oferece consultas à diretoria. Em 1975, com o nome de Unidos de São
Carlos, foi a primeira a ter problemas com a igreja, que proibiu o uso de
imagens sacras e quase inviabilizou o enredo "Festa do Círio de
Nazaré", que amargou o 10º lugar.
Neste carnaval, a
vermelho e branco apresentará o enredo “Salve Jorge! O guerreiro na fé”,
concebido por Chico Spinosa, que assinará o desfile ao lado dos jovens Amauri
Santos e Tarcísio Zanon, dupla responsável por trazer o Leão de volta para o
Grupo Especial após nove anos. Devoto do santo guerreiro e diante de um novo
desafio de um carnaval religioso, Spinosa foi em busca do apoio da arquidiocese
que, pela primeira vez, permitiu que uma escola de samba homenageasse um de
seus símbolos.
— O cardeal dom Orani
Tempesta aprovou a homenagem, e nós prometemos um desfile respeitoso, sem nudez
ou vulgaridade. Esse é um enredo desenvolvido em parceria com a arquidiocese,
que fez vistorias ao nosso barracão, avaliou as fantasias e acompanhou o
processo. Isto do entendimento do Papa Francisco, de que é necessário aproximar
o sagrado do profano para diminuir a violência. Todos ficamos muito felizes:
esse carnaval é a redenção do Cristo Mendigo — celebra, como um milagre.
Desfile
de tolerância
O carnavaleso
Tarcísio Zanon posa diante do carro Catedral de São Jorge, que reproduz imagens
de afrescos bizantinos - Fabio Rossi / Agência O Globo
Apesar do aval da
igreja, o sincretismo não ficou fora. Além de uma escultura de São Jorge com
quase seis metros de altura, a escola vai levar para a avenida uma imagem de
Ogum. Caçula entre os carnavalescos do Grupo Especial, Tarcísio Zanon, de 28
anos, lembra que, diferentemente da homenagem feita pelo Império da Tijuca em
2007, com “O intrépido Santo Guerreiro”, a Estácio levará para a Sapucaí uma
história de devoção.
—São Jorge já foi
mostrado de forma sincrética. Agora, nós vamos contar a história dele, do
nascimento na Capadócia à fé dos cariocas. Tudo com muito respeito, mas sem
abrir mão das mulheres sexys, que fazem parte da cultura da festa. Muito deste
apoio da igreja se deve às orientações do Papa Francisco, que busca aproximar o
sagrado do profano, e ao diálogo permanente aberto pelo cardeal dom Orani —
explica.
O professor Luiz
Antônio Simas entende que a concessão da arquidiocese é um reconhecimento à
importância da cultura popular, que pode estar relacionado ao crescimento das
igrejas neopentecostais. Para ele, o samba da Estácio não deixou de lado o
sincretismo.
— As igrejas
evangélicas estão ocupando o espaço dos terreiros e casas de santo das
comunidades, e a igreja católica enxerga isto. Não dava mais para ir contra o
carnaval e atrapalhar a manifestação cultural. O samba da Estácio tem elementos
facilmente identificáveis pelos iniciados: fala de feijoada, a comida de Ogum,
e de axé, a energia da construção no candomblé. São referências pouco
explícitas, mas profundamente respeitosas a todos os credos — enaltece.
O artigo original
poderá ser visto por meio desse link aqui:
Que Deus tenha
misericórdia de todos.
Alexandros Meimaridis
PS. Pedimos a todos
os nossos leitores que puderem que “curtam” nossa página no Facebook através do
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Desde já agradecemos
a todos.
Misericórdia mesmo. Faço minhas as sua palavras. E põe misericórdia nisso.
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