sexta-feira, 13 de abril de 2012

A ARTE DE FAZER GUERRAS

MARIANO FORTUNY - La Batalla de Tetuán (Museo Nacional de Arte de Cataluña, 1862-64. Óleo sobre lienzo, 300 x 972 cm).jpg
A batatlha de Tetuão de Mariano Fortuny, óleo sobre tela (MNAC) 

Referiu Samuel todas as palavras do SENHOR ao povo, que lhe pedia um rei, e disse: Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que corram adiante deles; e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinqüenta; ... e outros para fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros. ... As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores. ... Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos. Então, naquele dia, clamareis por causa do vosso rei que houverdes escolhido; mas o SENHOR não vos ouvirá naquele dia. Porém o povo não atendeu à voz de Samuel e disse: Não! Mas teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós e fazer as nossas guerras. Ouvindo, pois, Samuel todas as palavras do povo, as repetiu perante o SENHOR — 1 Samuel 8: 10—21.

Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas — 2 Coríntios 10:4

Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus — Efésios 6:17.

No artigo anterior[1] começamos a falar das contradições da cristandade[2] e nos referimos diretamente aos problemas causados pela atração da política e do poder. Para a manutenção do poder um dos componentes essenciais é o uso da força. E é exatamente do uso da força, especialmente a força militar, com o que iremos nos ocupar neste artigo.

Na Roma antiga o império cobrava, das nações subjugadas, pesados impostos visando especialmente, a manutenção de seu poderoso exército de mercenários. Ou seja, os povos dominados eram quem financiavam a manutenção da ordem estabelecida pelos romanos. Além de serem subjugados ainda tinham que pagar pesados impostos para ajudar a manter os dominadores como tais. Este foi um dos principais motivos porque os cristãos da igreja primitiva se recusavam a servir nos exércitos dos césares. Nossos irmãos do passado percebiam as graves implicações em servir nos exércitos de César. Eles sabiam que o serviço militar não era para a defesa da nação e sim para a expansão imperialista e a manutenção permanente da superioridade do império Romano e a conseqüente subjugação e exploração permanente dos povos conquistados. Nos dias modernos temos os dois casos: temos exércitos para a defesa das próprias pátrias e temos exércitos mercenários chamados, de modo eufemístico, de “exércitos profissionais” pagos apenas para fazerem guerras.
   
I - OUVINDO A VOZ DE LÚCIFER

Este processo de deterioração, entre a postura dos cristãos primitivos e a postura da cristandade atual é descrita de forma magistral por Franz J. Hinkelammert: “... o Império Cristão, tem um mecanismo infalível para estabelecer a culpa de suas vítimas e a divindade e a inocência dos vitimadores. As vítimas são vitimadas porque escutaram a voz de Lúcifer, e, conseqüentemente, merecem o castigo. Os perseguidores se sentem sem culpa. Perseguem os culpados, e, por persegui-los, são perdoados deles, os perseguidores, todas as suas culpas. O sangue das vítimas é sangue redentor para os vitimadores. É sangue de Deus que lava a culpa dos vitimadores e não das vítimas. O Império é a mão de Deus. O que resulta disso é uma cultura de agressão e dominação[3].

Não podemos ignorar a gravidade destas palavras citadas acima. Os cristãos, fundamentalistas fanáticos, encastelados em Washington, nestes dias, são mais perversos ainda que os fundamentalistas e fanáticos muçulmanos. Isto se deve a uma simples razão: eles detêm um poder de fogo e destruição que não pode ser oposto por nenhum ser humano. Aliás, faz parte da doutrina atual do pentágono que os Estados Unidos se dão o direito de atacar e destruir qualquer ameaça à sua supremacia atual. Esta doutrina é conhecida como “Preemtive Strike” que pode ser traduzida como “Ataque Preventivo”. Os senhores da guerra encastelados em Washington certamente nada aprenderam nos livros de história já que acreditam piamente que os Estados Unidos dominarão o mundo de hoje até a eternidade. E muitos cristãos estadunidenses acreditam que a guerra no Afeganistão e contra  o Iraque foi apenas um ensaio completo para a próxima e grande batalha, a batalha do Armagedom. Isto explica o sucesso do livro de Hal Lindsey “Blood Moon”, inédito ainda no Brasil, e da série de Tim LaHaye e Jerry Jenkins, “Deixados para trás”, editada e publicada no Brasil, originalmente pela United Press.

Robert Zimmerman, poeta estadunidense, colocou em palavras o que certamente seria o sentimento dos verdadeiros cristãos com relação a servir em exércitos mercenários e lutar guerras injustas como as que temos comentado acima:

Senhores da Guerra

Venham agora, Senhores da Guerra
Vocês que fabricam todas as armas
Vocês que constroem todos os aviões para a matança
Vocês que constroem as grandes bombas
Vocês que se escondem atrás das paredes
Vocês que se escondem atrás das mesas
Eu só quero que vocês saibam que
Eu posso ver através das máscaras de vocês

Vocês que nunca fazem nada
Que não seja para destruir
Vocês brincam com meu mundo
Como se fosse um brinquedinho
Vocês põem uma arma em minhas mãos
E se escondem dos meus olhos
E vocês se viram e fogem para longe
Enquanto as balas passam tinindo

Como o Judas de antigamente
Vocês mentem e enganam
Vocês querem que eu acredite
Que uma guerra mundial pode ser vencida
Mas eu vejo dentro dos olhos de vocês
Eu vejo dentro do cérebro de vocês
Exatamente como eu vejo a água
Que escorre pela minha privada

Vocês armaram os gatilhos
Para outros dispararem
Vocês se sentam na retaguarda e observam
Enquanto o número de mortos não para de crescer
Vocês se escondem em suas mansões
No mesmo instante em que o sangue de jovens
Flui de seus (dos jovens) corpos e enlameia a terra

Vocês inventaram o pior tipo de medo possível
O medo de trazer filhos para este mundo
Ameaçando assim ao meu filho
Ainda não nascido e sem nome ainda
Vocês não são dignos
Do sangue que corre em suas veias

Mas quem sou eu
Para falar deste jeito
Vocês podem dizer que eu sou jovem
Vocês podem dizer que eu sou ignorante
Mas tem uma coisa da qual eu tenho certeza absoluta
Mesmo sendo mais jovem que vocês
Nem Jesus Cristo vai perdoar
As coisas que vocês fazem

Deixem-me fazer-lhes uma pergunta
O dinheiro de vocês é tão bom assim?
Será que ele pode comprar o perdão para vocês?
Vocês acham mesmo que ele pode?
Mas eu quero lhes dizer que vocês irão descobrir
Quando a morte de vocês chegar
Todo o dinheiro que vocês conseguiram
Não conseguirá comprar de volta a alma de vocês

E eu espero mesmo que vocês morram
E a morte de vocês vai chegar rápido
Eu acompanharei o caixão de vocês
Numa tarde pálida
E eu vou ficar lá olhando enquanto o caixão é abaixado
No leito de morte de vocês
E eu vou ficar em pé sobre o túmulo de vocês
E ter certeza de que vocês estão mesmo mortos[4]

É tudo uma questão de poder. Por hora, o poder se encontra firmemente seguro nas mãos de George W. Bush a quem o jornalista Carlos Dorneles chamou, de maneira apropriada, de “homem truculento e trapalhão[5]”. Barack Obama tem se revelado tão ou mais truculento e trapalhão que o cowboy do Texas.

Além disso, os cidadãos estadunidenses, incentivados pelo seus presidentes e muitos pastores, confundem chauvinismo[6] com patriotismo. Não precisamos ir muito longe para sabermos onde isto tudo vai dar. No século XIX, o alemão Otto Von Bismarck-Schönhausen transformou um ajuntamento de pequenos estados no que hoje é a Alemanha. De acordo com os historiadores e biógrafos de Bismarck, ele era um homem cristão, que costumava ler a Bíblia e acreditava que Deus responde as orações e que guia nossas vidas. Todavia, este homem, além de dar forma ao país Alemanha, ia muito além na sua visão da Alemanha unificada. Ele foi o idealizador do conceito “Alemanha Acima de Tudo - Deutschland Uber Alles”, que não passava de uma visão chauvinista que acabou por arrastar a Alemanha para iniciar as duas maiores guerras do século XX. As similaridades com o chauvinismo estadunidense dos dias de hoje não podem ser ignoradas. O problema central reside no fato de homens serem corrompidos pelo poder, enquanto acreditam que possuem um mandato divino. Seus crimes são então cometidos em nome de Deus. Quando o presidente dos Estados Unidos declara que “deus está do nosso lado” ele age da maneira descrita por Franz J. Hinkelammert acima. Note que “deus está do nosso lado” e não “nós estamos do lado de Deus”, indicando que “nós” somos aqueles ao lado de quem deus quer estar. Suas vítimas odeiam o deus que ele representa, neste caso, o deus da cristandade. Esta mistura de política com religião com a conseqüente divinização de personalidades políticas compõe uma das formas mais perversas das contradições que encontramos na cristandade. Da mesma maneira que inúmeras igrejas alemãs, se alinharam com o movimento chauvinista ultranacionalista dos Nazistas nos anos 30, a ponto de um membro de uma destas igrejas considerar os nazistas como “dom e milagre de Deus”[7], nos dias de hoje os fundamentalistas cristãos, capitaneados pelo senhor Barack Houssein Obama acreditam que podem impor tudo que sua visão distorcida entende ser a vontade revelada de deus, ao resto do mundo. O mundo precisa se segurar, pois estamos vivendo dias em que a cristandade não contente em dominar o mundo ocidental se volta agora para uma dominação total do oriente próximo, médio e extremo[8]. Esta dominação é geralmente denominada de forma branda como “globalização”.

II. O CRISTÃO E AS GUERRAS

Desde Woodrow Wilson que presidiu os Estados Unidos de 1913 até 1921 os presidentes daquele país costumam se referir às guerras em que os Estados Unidos da América se envolvem, incluindo a do Afeganistão, Iraque e contra o terror, como “a guerra para acabar com todas as guerras”. É apenas uma frase de efeito já que o complexo militar-industrial que manda nos Estados Unidos, hoje acabou se reinventando com os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. Essa frase foi usada pela primeira vez com referência à Primeira Guerra Mundial, que terminou em 1918. Na ótica de Wilson a guerra para acabar com todas as guerras visava “tornar o mundo mais seguro para a democracia” que curiosamente é outra frase muito utilizada por George Walker Bush e Barak Obama para justificar suas guerras sem tréguas ao terrorismo. Como todos sabem, infelizmente, as guerras continuaram e continuam a acontecer. Mas, deve um cristão pegar em armas? Talvez um pouco de história nos ajude a colocar esta questão em perspectiva, antes de analisarmos o que o Senhor Jesus ensinou e a igreja primitiva praticou.

A. A Guerra da Criméia

A península da Criméia é uma extensão de terra que se projeta para dentro do Mar Negro e se liga ao sul da Ucrânia através do istmo de Perekop. A sensação que experimentamos quando escalamos as montanhas ao sul da Ucrânia que chegam a 1500 metros acima do nível do mar nos deixa duplamente sem fôlego. Primeiro porque a subida é extremamente aguda e em segundo lugar porque, uma vez lá em cima, percebemos que o outro lado é ocupado pelo magnífico Mar Negro. A península em si mede meros 27.000 Kilômetros quadrados e boa parte dela está ocupada por cemitérios dos antigos Citas[9]. A história nos diz que muitos e diferentes povos ocuparam a península da Criméia através dos séculos. Entre estes nós podemos citar: os godos, os hunos, os citas, os cazares, os gregos, os mongóis e os turcos otomanos. Foram estes últimos que conquistaram a península em 1475.

Em 1783 toda a região da Criméia foi anexada ao Império Russo. A Rússia montou uma monumental base naval na cidade de Sebastopol.  Em 1853 a Turquia iniciou uma guerra contra a Rússia visando retomar a península da Criméia. O que deveria ter sido mantido como um conflito localizado assumiu proporções monumentais, pois a Grã Bretanha - Império Colonial Britânico e a França - Império Colonial Francês - tomaram lado com a Turquia -  Império Otomano - para se opor à Rússia - Império Russo. O início oficial da assim chamada Guerra da Criméia foi 28 de Março de 1854. Naqueles dias já fazia 39 anos que Napoleão havia sido derrotado na batalha em Waterloo – em 1815 - e a Primeira Guerra Mundial ainda estava 60 anos no futuro -  teria início em 1914.

Entre os combatentes do lado russo encontrava-se um jovem segundo tenente que atendia pelo nome de Leon Tolstói. Este Tolstói lutou na primeira fase da guerra na cidade de Sebastopol onde se encontrava, como já dissemos, uma enorme base naval russa. Retornando a São Petersburgo Tolstói produziu e legou para a humanidade uma extensa obra literária. Entre seus livros encontramos um longo romance intitulado “Guerra e Paz[10]”. Este romance que foi publicado entre os anos de 1865 e 1869 possui incríveis 365 capítulos. Em muitos destes capítulos Tolstói relata de maneira viva e realista inúmeras cenas de batalhas como as que havia presenciado na Guerra da Criméia. Sem exageros, em muitas partes a leitura se torna extremamente angustiante.

O motivo político do porque a Guerra da Criméia existiu deve-se ao fato de que com a débâcle do Império Turco Otomano no leste da Europa, um enorme vácuo de poder estava sendo criado. Mas o verdadeiro motivo foi religioso. Isto é o que acontece sempre que a separação que deve existir entre o estado e a igreja não é respeitada. Assim é que a Rússia ortodoxa se via como protetora dos locais sagrados na Palestina - contra a dominação da França católica - e como protetora dos cristãos ortodoxos vivendo sob o domínio do sultão otomano. Desta forma a Rússia exigiu que um protetorado fosse criado dentro do Império Turco Otomano para acomodar e proteger os cidadãos de fé cristã ortodoxa. O sultão turco, evidentemente, se recusou a anuir com este pedido. Como reação à negativa turca a Rússia invadiu dois estados vassalos do sultão na região da Romênia: a Walachia - chamada de Iflak pelos turcos - e a Moldávia - chamada de Bogdan pelos otomanos. A Turquia declarou guerra à Rússia em 1853.

Guerras entre o Império Otomano e o Império Russo não eram muita novidade como provam as três outras guerras Russo - Turcas anteriores entre 1768—1774; 1787—792 e 1828—1829. Estas guerras eram acompanhadas com vivo interesse pelas potências européias. Após a invasão dos estados vassalos pela Rússia a mesma recebe uma ordem dos poderosos impérios Britânico e Francês para devolver os mesmos. Os Russos se recusam e a Grã Bretanha e a França entram oficialmente na guerra com as tropas que já haviam enviado anteriormente ao Mar Negro.

Temos que nos lembrar que os Impérios Britânico e Francês eram inimigos ferrenhos e competiam ombro a ombro pela dominação do mundo. Mas, usando a desculpa de ajudar a Turquia os dois rivais se associam para combater a Rússia mais ou menos na mesma linha em que Pilatos se reconciliou com Herodes no dia em que condenou Jesus à morte - ver Lucas 23:1—12). A guerra da Criméia se concentrou na península por causa da base naval russa na cidade de Sebastopol. Com a queda de Sebastopol e a destruição da armada ali localizada a Rússia se viu derrotada e forçada a assinar o chamado “Tratado de Paris” em 30 de Março de 1856, exatos dois anos e dois dias após o início das hostilidades. Desta forma os impérios Britânico e Francês “salvaram” o império Turco Otomano, império este que destruiriam completamente durante a assim chamada Primeira Grande Guerra Mundial de 1914 a 1918.

A guerra da Criméia representou um avanço brutal na chamada “arte da guerra”, pois pela primeira vez foram utilizados rifles com miras de precisão, as linhas férreas foram usadas de forma tática pelos estrategistas o mesmo acontecendo com o telégrafo. Surgiram também as minas marítimas e os combates em trincheiras. Inúmeros progressos foram alcançados nas práticas médico-cirúrgicas para tratamento de combatentes feridos e os cigarros - grande novidade em meados do século XIX - alcançavam os soldados de forma mais veloz que as balas dos inimigos. Todavia uma inovação, em um produto já existente, foi o que de mais significativo aconteceu durante aqueles dois anos de guerra: a fotografia.

A fotografia - escrita feita pela luz - havia sido inventada entre 1826 e 1827 pelo francês Joseph-Nicéphone Niepce – 1765—1833. Seu método exigia um tempo de exposição de 8 horas aproximadamente. Alguns anos mais tarde, em 1839, um associado de Niepce, Louis-Jacques-Mandé Deguerre – 1787—1851 introduziu um novo método de fotografia, descrito como daguerreótipo. Este método reduzia o tempo de exposição drasticamente para algo em torno de 20 a 30 minutos. A partir daí os próximos desenvolvimentos são devidos aos ingleses. O primeiro aconteceu já no ano seguinte, em 1840, quando William Henry Fox Talbot – 1800—1877 inventou o “colótipo”, que foi patenteado em 1841 com o nome de “talbótipo”. A invenção de Talbot criou, na prática, o primeiro negativo, e possibilitou a reprodução de uma mesma fotografia. Agora, o tempo entre exposição e revelação estava reduzido a poucos minutos. Em 1850, outro inglês, Frederick Scott Archer – 1813—1857 - introduziu outro processo de confecção de negativos. Sua invenção afetou profundamente a prática da fotografia. A invenção de Frederick fez com que o processo de revelação que levava minutos passasse a ser executado em segundos. Estamos agora bem próximos do início da guerra da Criméia. Era inevitável que os avanços fotográficos fossem utilizados nos campos de guerra.

Correspondentes de guerra britânicos trabalhando para o “The Times” de Londres estavam reportando, por escrito, os horrores da guerra da Criméia. Estas reportagens foram lidas pelo proprietário de uma editora chamada Thomas Agnew & Sons. Este Thomas Agnew resolveu enviar então o fotógrafo oficial da família imperial Britânica, Roger Fenton – 1819—1869 - para produzir uma história fotográfica da zona de guerra. Roger Fenton ficou 3 meses e meio na Criméia de onde retornou com 360 fotografias na bagagem e o bacilo da cólera nos intestinos. Curiosamente apesar de sabermos que a Guerra da Criméia deixou um saldo de aproximadamente 200.000 mortos nenhum deles foi fotografado por Fenton. Sua exposição fotográfica acerca da guerra, inaugurada em Londres em 20 de Setembro de 1855, mostrava, basicamente, suprimentos militares, os líderes da forças aliadas e cenas pitorescas mais apropriadas a um turista do que a um repórter fotográfico de guerra. De forma surpreendente, entre as 312 fotografias expostas, não havia nenhuma fotografia sequer, isto mesmo, zero, zipo, de cenas de combates, de destruição e da devastação tão comum em regiões de conflitos armados.

A guerra da Criméia sim devia ter sido a guerra para acabar com todas as guerras. Devia, mas infelizmente o uso que se fez das fotografias de Roger Fenton em vez de servir como desestímulo a novas guerras serviu apenas como propaganda para o esforço de guerra. A elite britânica - que se denominava “cristã”, tinha medo de que fotos mostrando atrocidades pudessem desestimular o interesse do povo de apoiar a guerra. Por este motivo somente fotos mostrando aspectos de “não combate” foram liberadas para a apreciação do público. É uma pena que uma oportunidade única como esta fosse jogada pelo ralo e justamente por quem? Por uma nação que se dizia cristã em plena Era Vitoriana quando os ingleses nas palavras de Michael Griffith “estavam muito próximos da beira do abismo que confunde respeitabilidade com santidade”[11].

B. A Cristandade e as Guerras

Como vimos anteriormente[12], tão logo a Igreja saiu das catacumbas ela passou a fazer parte da formidável força que era representada pelo exército romano. A partir daí a história foi somente morro abaixo.

Olhando para a história da Cristandade o holandês Hugo Grotius (Hugo de Groot) escreveu o seguinte: “Eu tenho visto em todo o mundo chamado cristão uma licença para guerrear que faria corar de vergonha as nações mais bárbaras que já existiram! Guerras foram iniciadas baseadas em motivos banais ou até mesmo sem nenhum motivo que as justificassem e foram levadas adiante sem nenhuma consideração às leis humanas ou divinas[13]”. Este comentário poderia parecer contemporâneo devido sua atualidade. Mas temos que destacar, caso o leitor seja levado ao erro, que Hugo Grotius não escreveu estas palavras recentemente e sim em 1625!

Na mesma linha de pensamento outro holandês mais famoso que Grotius, Desiderius Eramus, que estava muito longe de poder ser rotulado como um pacifista dos tempos modernos costumava dizer: “A guerra pode ser aceitável entre as bestas, pois lhes falta a iluminação da razão, mas entre seres humanos a mesma é uma grande aberração, pois todos os males que acontecem durante e após as guerras podem ser compreendidos com o uso da razão somente. Agora entre aqueles que se dizem “cristãos” a guerra é completamente inconcebível não somente por ser racionalmente discutível, mas pelo que é ainda muito mais importante, ser eticamente inadmissível”.

Em tempos mais recentes um Major General dos U.S. Marine Corps, o Sr. Smedley Buttler em um pequeno livro intitulado “War is a Racket” escreveu o seguinte: “A guerra é um esquema fraudulento. Sempre foi. É possivelmente o mais antigo, facilmente o mais rentável e certamente o mais brutal. É o único completamente internacional em seu escopo. É o único em que o lucro é contabilizado em dólares e as perdas em vidas humanas[14]”.
Acerca de citações que apóiam ou justificam as guerras feitas por cristãos, o autor como cristão, se sente envergonhado de fazê-las. Única exceção será feita a uma frase proferida pelo Sr. George Walker Bush já citada no capítulo 1 - ver nota # 12. Disse o Sr. Bush “Nós iremos exportar a morte e a violência aos quatro cantos da terra em defesa da nossa grande nação[15]”.

O autor deste artigo pede encarecidamente que todos os leitores que já estiverem devidamente armados com todo o arsenal de versículos do Antigo Testamento visando tentar justificar atos de guerra, que poupem seu tempo e do autor não enviando nenhum e-mail ou fazendo comentários que não seja fruto de profunda reflexão sobre o que está escrito aqui. O autor se dispõe, todavia, a considerar devidamente todo e qualquer argumento baseado no Novo Testamento. Quero aclarar porque não aceito argumentos baseados no Antigo Testamento. A condição que existia durante os dias do Antigo Testamento é nas palavras do autor da epístola aos Hebreus, semelhante à de se mover entre sombras, figuras e tipos. A realidade pertence ao Senhor Jesus. Os dias do Antigo Testamento não correspondiam à realidade que passamos a possuir desde o primeiro advento do Nosso Senhor e Salvador Jesus o qual seja bendito por todas as eras sem fim. O reino de Nosso Senhor Jesus não é uma teocracia como a que existia nos dias do Antigo Testamento. Aquele reino tinha fronteiras bem delimitadas. Esse não possui fronteiras. Nada me entristece mais do que ver irmãos na fé referindo-se a algum país, mas principalmente aos Estados Unidos da América, como sendo uma nação cristã. Este conceito de nação cristã não existe dentro do Novo Testamento. Não adianta nem procurar porque não existe o menor traço desta idéias dentro do Novo Testamento. Jesus e os apóstolos tinham plena consciência de que somos cidadãos não de algum país desta terra e sim cidadãos dos Céus.   

III – DEVE O CRISTÃO PEGAR EM ARMAS?

Durante os “anos de chumbo[16]” tivemos que aprender a lidar com um conceito confuso e nunca precisamente definido que era o conceito envolvido na expressão “segurança nacional”. Fosse o que fosse o significado daquela expressão, hoje sabemos que o mesmo não tinha nada a ver com justiça e o direito. Aqueles foram anos tumultuados e para um adolescente que havia acabado de ser converter ao Senhor Jesus. Tal situação apresentava inúmeros desafios e muitos questionamentos. Seria lícito a um crente prender, torturar e matar mesmo em nome do estado? Seria lícito se rebelar e juntar-se a algum movimento que visasse derrubar os militares pelo uso da força? Ou se quisermos colocar de outra maneira: Seria lícito a um crente, sob qualquer hipótese, tomar uma arma em suas mãos para com ela tirar a vida de outro ser humano? Ficam excluídos aqui aqueles que precisam, por força da lei, portarem armamentos para sua defesa pessoal, e da sociedade.

Os compêndios de história da igreja estão repletos de dados acerca dos fatos de que a resposta fornecida pelos cristãos primitivos à pergunta feita acima seria um retumbante não.

Os primeiros registros históricos a mencionarem cristãos nas fileiras dos exércitos romanos são do ano 175 da era cristã. Mas não deve ser assumido por ninguém que cristãos pertencendo aos exércitos de César fossem a norma na igreja primitiva - do pentecostes até o final do século I - ou mesmo durante o século subseqüente. Alguns escritores cristãos[17] a partir do terceiro séculos deixaram registros deveras interessantes a este respeito como podemos notar pelas seguintes citações:

  • Seria lícito a qualquer cristão fazer do uso de uma espada sua profissão quando o próprio Senhor nos adverte que todos aqueles que lançam mão da espada à espada morrerão” - Tertuliano (155/160—220) citando Mateus 26:52.

  • Pois nós não mais tomamos da espada para combater outra nação nem nos inclinamos mais na direção da guerra, pois nos tornamos filhos da paz, por amor a Jesus que é o nosso líder” - Orígenes (185—254)

  • Talvez as palavras do Bispo de Cartago, Cipriano (200—258), que foi martirizado pela sua fé em Jesus Cristo traduzam melhor o sentimento que existiam nos cristãos primitivos acerca de tomar uma espada e matar um semelhante. Ele disse: “Se um homem tomar uma espada e matar um semelhante em secreto isto é considerado um crime, mas se o mesmo ato, o assassinato de um semelhante, for cometido com as bênçãos do governo então tal ato é chamado de “ato de coragem”.

A leitura dos escritos de Cipriano de Cartago atinge níveis realmente incômodos quando o ouvimos dizer que: “aos cristãos não é concedido matar outro ser humano, pelo contrário, os cristãos precisam estar dispostos a entregar suas próprias vidas”. Estas palavras são perturbadoras porque foram proferidas por um homem que viveu à altura do que ensinava já que, como mencionamos, ele foi morto por causa da sua fé.

Todavia muito mais importante do que a atitude dos cristãos primitivos com relação aos crentes pegarem em armas para matar semelhantes é o ensinamento do Novo Testamento a este respeito.

O Senhor Jesus foi bem categórico a este respeito durante o assim chamado Sermão do Monte. Em Mateus capítulos 5 a 7 e outras passagens nós encontramos Jesus ensinando que:

  • Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus – Mateus 5:9.

  • Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas – Mateus 5:39 – 41.

  • Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos – Mateus 5:44 – 45.

  • Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas – Mateus 7:12.

  • Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui - João 18:36.

O apóstolo Paulo também deixa claro que as armas da nossa milícia não são carnais - 2 Coríntios 10:4, e que a verdadeira espada de cada cristão é a do Espírito Santo, i.e. a Palavra de Deus - Efésios 6:17. Talvez a contribuição mais significativa do apóstolo Paulo a toda esta questão tenha sido mostrar o que Jesus queria dizer ao ensinar “amai vossos inimigos”, conforme registrado em Mateus 5:44. O comentário de Paulo acerca do que significa amar está registrado em 1 Coríntios 13: 4 – 8a onde lemos:

O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba.

A pergunta que não quer calar é: Fazer guerra e promover a matança desenfreada de seres humanos é compatível com a descrição que Paulo fez acima do que implica o mandamento do próprio Senhor Jesus de que devemos amar nossos inimigos? Não me canso de me chocar vendo reportagens televisivas em que as mesmas pessoas que gritam o mais alto possível contra o aborto dos inocentes sejam os mesmos que gritam a favor da pena de morte e de se manter um poderio militar acima de qualquer outra coisa. É uma contradição típica da cristandade se dizer pró vida ao mesmo tempo em que apóia a matança generalizada em campos de guerra.

É tempo de tomarmos uma decisão baseada exclusivamente na ética ensinada no Novo Testamento. E a ética de Jesus é em suas próprias palavras a seguinte: o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las – Lucas 9:56.

Que Deus abençoe a todos.

Alexandros Meimaridis

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Desde já agradecemos a todos.


[1] Ver:
 “http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2011/07/as-contradicoes-da-cristandade.html

 – Política e Poder” também disponível nesse site.

[2] Por Cristandade o autor se refere a este sistema completamente falido representado por todos os grupos que se denominam cristãos e que pretendem estar seguindo os ensinamentos Bíblicos e imitando a Jesus.

[3] Franz J. Hinkelammert, sacrifícios humanos e sociedade ocidental: LÚCIFER E A BESTA, Paulus, São Paulo, 1995.

[4] Bob Dylan, Lyrics 1962 – 1985, Alfred A. Knopf, New York 1992. (Letra publicada no álbum “The FreeWheelin’ Bob Dylan”. Tradução livre do autor.

[5] Carlos Dorneles, Deus é Inocente a imprensa, não, Editora Globo, São Paulo, 2002.

[6] Nacionalismo exagerado.

[7] Donald Bloesch, Crumbling Foundations, Zondervan, Grand Rapids, 1984.

[8] É importante destacarmos aqui, as palavras do cidadão holandês, conhecido como irmão André, quando em entrevista à revista Enfoque de Junho de 2003 ao ser perguntado acerca de como a guerra entre os EUA e o Iraque prejudica o trabalho missionário disse o seguinte: “Antes da guerra, eu poderia afirmar que o coração do povo mulçumano estava bem aberto ao Evangelho. Agora o espaço para o Evangelho retrocedeu mil anos. Se Bush tivesse demonstrado perdão ao que aconteceu em 11 de Setembro, poderíamos ter alcançado o mundo mulçumano para Jesus. O que pode atrair os mulçumanos para Jesus é a prática do amor do Cristianismo, pois eles estão cansados de palavras”.

[9] Citas, povo nômade, notável na arte e na guerra, desaparecido por volta do séc. II a.C., e que entre os séculos V e II a.C. habitou a Cítia, denominação dada pelos antigos gregos a regiões próximas ao mar Negro e ao mar Cáspio.  

[10] Tólstoi, Leon. Obra Completa. Companhia Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1965.

[11] Michael Griffiths. God's Forgetful Pilgrims. William B. Eerdmans Publishing Company, Grad Rapids, 1978.

[12] Ver o artigo “A Essência da Cristandade – Parte 1” que também está disponível no jesussite.org

[13] Hugo Grotius. On The Law of War and Peace. Batoche Books, Kitchener, 2001.

[14] Major General Smedley Darlington Butler (1881 – 1940). War is a Racket. Publicado na Internet, 2006.

[15] Citado por Laurence Vance no artigo “Christianity and War”, sem data.

[16] A expressão “anos de chumbo” é usada aqui como uma referência aos anos da ditadura militar que se seguiram à revolução de 31 de Março de 1964 e que foi, curiosamente, chamada pelos militares de “a Redentora”.

[17] Todas as citações dos assim chamados “pais da igreja” foram retiradas de: Schaff, Philip e Roberts, Alexander, editores. The Early Church Fathers, 38 Volumes. Hendricson Publishers, Inc., Peabody, 2005. Obra monumental que cobre os escritos dos pais da igreja até o sétimo concílio genuinamente ecumênico realizado em Nicéia no ano 787 da era cristã.

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