O final: Abdullah nada mudou de
verdade em mais de nove anos de reinado e adulação da mídia ocidental — Hassan
Ammar/AFP
O artigo abaixo foi publicado
pelo site da Revista Carta Capital e é da autoria de Antonio Luiz M. C. Costa
Nem
a morte os separa
Os EUA renovam uma aliança de 70
anos com o fundamentalismo mais reacionário do Oriente Médio
por Antonio Luiz M. C. Costa
Não se poderia culpar o
proverbial marciano se ele apontasse a Arábia Saudita como a superpotência
dominante do nosso planeta. Barack Obama não julgou a manifestação contra o
atentado ao Charlie Hebdo, da qual participaram todos os principais líderes
europeus, importante o suficiente para enviar sequer um funcionário de segundo
escalão. François Hollande teve de satisfazer-se com a solidariedade da
embaixadora. Mas, ante a morte do rei Abdullah e a entronização de seu irmão
Salman, encurtou uma supostamente histórica viagem à Índia para prestar
homenagem ao novo soberano saudita, acompanhado por uma comitiva na qual se
incluíam o secretário de Estado, o diretor da CIA, o chefe do Comando Central
do Pentágono e algumas das principais lideranças democratas e republicanas do
Congresso.
Ao mesmo tempo, a Casa Branca e
os principais órgãos da mídia dos Estados Unidos não poupam esforços para
apresentar o finado autocrata como um líder visionário, um grande reformista,
um modernizador moderado e esclarecido e um pacifista. Piada de péssimo gosto.
Em quase dez anos de reinado, quase nada mudou em suas instituições
absolutistas e fundamentalistas.
Organizações civis são proibidas, salvo para fins de caridade. Eleições
(salvo municipais), partidos, Parlamento e oposição continuam a ser tabus. Não
há código de leis, pessoas são rotineiramente decapitadas, mutiladas e
torturadas conforme os caprichos de juízes religiosos e um blogueiro acaba de
ser condenado a mil chibatadas e dez anos de prisão por pedir liberdade de
expressão. Mulheres não podem dirigir nem sair de casa ou fazer compras sem
autorização de seu guardião (pai, irmão ou marido). O nepotismo não é abuso, é
norma: os cargos são preferencialmente reservados aos 7 mil príncipes da
família real.
Sobre o suposto pacifismo,
bastaria lembrar a pressão saudita por um ataque estadunidense ao Irã, a
repressão violenta aos protestos da minoria xiita, a intervenção em Bahrein e o
apoio ao brutal golpe militar do Egito. Mas há muito mais: não só a ideologia
da Al-Qaeda e do Estado Islâmico é o mesmo wahabismo ou neossalafismo que é a
doutrina oficial do Estado saudita desde suas origens no século XVIII, como
ambas as organizações terroristas foram apoiadas, financiadas e armadas pela
Arábia Saudita para combaterem os regimes xiitas de Damasco e Bagdá, simpáticos
ao Irã. Muito do dinheiro veio de doadores privados, mas a monarquia certamente
conhece seus nomes e não quer ou não ousa intervir. Era assim antes dos
atentados de 11 de setembro (cujos organizadores e executores, assim como Osama
bin Laden, eram na maioria sauditas) e continuou a acontecer depois.
Segundo Laure Mandeville, do
jornal francês Le Figaro, a inteligência dos EUA está cada vez mais preocupada
com o papel da Arábia Saudita na propagação do jihadismo salafista e com a
crescente adesão de seus militares às suas vertentes mais extremas. Em 2014, a
monarquia saudita pôs o Estado Islâmico na lista de organizações terroristas,
começou a participar das operações de bombardeio do Estado Islâmico lideradas
pelo Pentágono e a construir uma cerca de 700 quilômetros em sua fronteira norte,
para evitar a infiltração de militantes. Entretanto, isso não a protege do
recrutamento de simpatizantes do califa em suas próprias fileiras: em 5 de
janeiro, o general Oudah al-Belawi, enviado à fronteira norte para avaliar a
lealdade de unidades duvidosas, foi assassinado por um ataque suicida do Estado
Islâmico, certamente informado de sua presença por informantes dentro do
próprio Exército.
A família real também convocou
seus clérigos a deslegitimar o Estado Islâmico, mas essa é uma tarefa ingrata,
pois não há diferença entre suas próprias doutrinas e as do autoproclamado
califa Ibrahim Al-Baghdadi. Apenas este é mais intransigente ao aplicá-las sem
“mas” ou “poréns”, sem fazer concessões às elites nem acordos com o Ocidente.
A Arábia Saudita é igualmente um
foco de doutrinas fundamentalistas e terrorismo. Acontece ser também dona das
maiores e mais lucrativas reservas de petróleo do mundo e do quarto maior
orçamento militar, atrás apenas de EUA, China e Rússia e à frente de potências
tradicionais como França e Reino Unido. É o maior importador de armas
ocidentais e, além disso, segundo fontes da inteligência ouvidas pela BBC, tem
um acordo secreto com o Paquistão para obter armas nucleares em troca de
petróleo e financiamento.
A aliança com os EUA de fevereiro
de 1945, quando Franklin Roosevelt recebeu o rei Abdulaziz ibn Saud (pai de
todos os sucessores: Saud em 1953, Faisal em 1964, Khalid em 1975, Fahd em
1982, Abdullah em 2005 e Salman em 2015) a bordo de um cruzador no Canal de
Suez e ofereceu-lhe proteção e assistência militar em troca de garantia de
acesso às suas reservas de petróleo, uma base militar em Dhahran e a não
oposição do reino à imigração judaica na Palestina e eventual fundação de
Israel. Desde então, apesar das tensões causadas pelas guerras
árabes-israelenses e dos choques do petróleo, os termos do acordo foram
mantidos. A família Saud precisou cada vez mais desse pacto para resistir aos
desafios internos e externos e os EUA para controlar o fornecimento de petróleo
ao Ocidente e combater o avanço do socialismo e do nacionalismo no Oriente
Médio.
Mesmo quando isso implicou
colaborar com o Ocidente contra outros muçulmanos, os sauditas foram um aliado
confiável contra os soviéticos, o nasserismo, o Irã, os movimentos democráticos
árabes e a Irmandade Muçulmana, uma vertente rival e menos reacionária do
fundamentalismo que na Primavera Árabe, com apoio do Catar e sua Al-Jazeera,
ameaçou mudar o mapa político do Oriente Médio e aliar o Egito ao Irã e ao
Hamas. Neste momento seus interesses voltam a convergir no Iêmen, onde um
governo amigável para com os EUA e os sauditas acaba de ser derrubado por
rebeldes xiitas simpáticos ao Irã. Mas essa Realpolitik, inconsistente com o
wahabismo, sempre foi vista com desconfiança por parte dos súditos.
Desde 1945, clérigos
ultraconservadores protestam contra a presença dos infiéis na base de Dhahran.
A aliança explícita com Washington e a presença massiva de tropas do Pentágono
em terras sauditas na Guerra do Golfo de 1990 levou essa insatisfação a outro
patamar. Foi nessa ocasião que Bin Laden rompeu com a monarquia, elegeu os EUA
como seu principal inimigo e recebeu apoio moral e financeiro de parte da elite
saudita. Essa presença militar foi um dos motivos alegados pela Al-Qaeda para
os atentados de 11 de setembro, que na época, segundo o serviço de inteligência
saudita, tiveram o apoio de 95% dos sauditas de 25 a 41 anos.
A reação à Primavera Árabe gerou
uma aliança informal com Israel, que foi certamente mal recebida pelos mesmos
setores. Em 2011, a Alemanha consultou Israel sobre a venda de 200 tanques aos
sauditas e Benjamin Netanyahu a aprovou sem restrições: esmagar as revoltas
árabes é prioritário. Desde então, o Mossad e a inteligência saudita mantêm
reuniões regulares e, apesar das críticas oficiais à política de Israel na
Palestina, nos bastidores os sauditas felicitam Israel pelos bombardeios em
Gaza contra o Hamas.
Em combinação com a imagem de
desperdício, corrupção e nepotismo da família real e as restrições financeiras
decorrentes da própria política saudita de derrubar os preços do petróleo para
tomar mercado de concorrentes, a acusação de traição à causa muçulmana é
explosiva, pois pode legitimar um levante. Pela segurança aparente
proporcionada pela aliança com os EUA, a monarquia se dispensou de modernizar
suas instituições arcaicas e Washington, satisfeita com sua fidelidade, jamais
a pressionou com seriedade nessa direção. Como a população é mantida em
passividade forçada e faltam meios de medir, expressar e negociar a insatisfação,
esta pode explodir de forma radical quando menos se espere, talvez nos próprios
meios militares. Assim como no Paquistão, onde os militares apoiam
discretamente o Taleban afegão e Bin Laden abrigou-se por anos às portas da
Academia Militar, parte das Forças Armadas pode estar comprometida com a
Al-Qaeda ou o Estado Islâmico.
Enquanto isso, o rei Salman,
sofre, aos 79 anos, das sequelas de um AVC e do mal de Alzheimer, e seu irmão e
herdeiro, Muqrin, de 69 anos, é visto como um continuador de Abdullah. O
sobrinho Mohammed bin Nayef, 55 anos, o seguinte na linha de sucessão, será o
primeiro da geração de netos de Ibn Saud a subir ao trono. É tido como menos
corrupto e mais competente que os irmãos, mas agressivo e implacável,
responsável pela execução ou prisão de centenas de opositores não violentos.
Educado nos EUA, sobreviveu a um atentado da Al-Qaeda em 2009 e sua nomeação
como ministro do Interior, em 2012, foi lamentada por defensores de direitos
humanos. Ele é responsável pela política saudita na Síria e no Iraque desde
fevereiro de 2014 e logo depois reuniu-se no Marrocos com seus pares de outros
países árabes para organizar um esforço conjunto para erradicar a Irmandade
Muçulmana. Quer deter as mudanças do mundo à sua volta, não se adaptar a elas.
Em outras palavras, a sucessão traz mais do mesmo e nenhum vislumbre de como
desarmar a bomba-relógio na qual esse país se tornou.
O artigo original do site da
Carta Capital poderá ser visto por meio desse link aqui:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
Alexandros Meimaridis
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