Aos poucos temos notado o
aparecimento de inúmeros sites, artigos e, especialmente vídeos, na Internet defendendo
a ideia canhestra que a compreensão dos evangélicos acerca do texto de Isaías
52:13 — 53:12 é fruto da ignorância do texto hebraico e também duma exegese
superficial.
Entre os motivos alegados recebe
destaque o perene argumento que nossas traduções, bem como toda e qualquer
tradução, não refletem com precisão o texto original em hebraico. Mas isso é
apenas mais uma grande tolice. Prova disso, é que queremos iniciar esse debate
aqui no Blog O Grande Diálogo apresentando um artigo de autoria do Professor
Doutor Luciano R. Peterlevitz que é, inclusive, professor do idioma hebraico.
Vamos ao texto do professor
Peterlevitz.
O servo sofredor em Isaías 52:13
— 53:12
O servo sofredor em Isaías 52:13
— 53:12
Introdução
Um estudioso alemão chamado
Bernhard Duhm, em seu comentário do livro de Isaías publicado em 18921
identificou quatro cânticos em Isaías 40—55, que similarmente apresentam um
personagem conhecido como “o Servo do Senhor”:
1º cântico: 42:1—7
2º cântico: 49:1—9
3º cântico: 50:4—9
4º cântico: 52:13 — 53:12.
Certamente o quarto cântico — Isaías
52:13 — 53:12 é o mais conhecido para os cristãos. Isso porque este texto
isaiano descreve o sofrimento, a morte e a exaltação do Servo do ETERNO, e o NT
reconhecidamente identifica esse Servo com o Messias prometido pelos profetas
do Antigo Testamento —
Atos 8:32—33
32 Ora, a passagem da
Escritura que estava lendo era esta: Foi levado como ovelha ao matadouro; e,
como um cordeiro mudo perante o seu tosquiador, assim ele não abriu a boca.
33 Na sua humilhação,
lhe negaram justiça; quem lhe poderá descrever a geração? Porque da terra a sua
vida é tirada.
Mateus 8:17
Para que se cumprisse o
que fora dito por intermédio do profeta Isaías: Ele mesmo tomou as nossas
enfermidades e carregou com as nossas doenças.
Lucas 22:37
Pois vos digo que
importa que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado com os
malfeitores. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido.
1 Pedro 2:24
Carregando ele mesmo em
seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os
pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados.
Não é sem razão, pois, que o
personagem apresentado no quarto cântico é comumente chamado de “Servo Sofredor”.
Porém, a questão da identificação
do Servo de ETERNO tem sido bastante disputada entre os comentaristas de
Isaías. Por essa razão, o presente artigo primeiramente apresentará as várias
opiniões sobre a identidade do Servo, para depois analisar exegeticamente o
quarto cântico do Servo. O objetivo deste artigo é mostrar que a leitura cristã
não é fruto de uma exegese descuidada do texto isaiano. Na verdade, uma análise
das palavras hebraicas desse quarto cântico revela que o texto de Isaías
realmente apontava para o Gólgota e para o túmulo vazio.
Interpretações
A identificação do Servo do
Senhor tem sido objeto de muito debate na pesquisa bíblica. Três interpretações
podem ser destacadas2:
1ª — A interpretação
coletiva. O servo seria Israel, como povo ou comunidade que sofrera
o exílio babilônico — cf. 41:8—9; 49:3. Muitos intérpretes que aderem a essa
perspectiva creem que, nesse quarto cântico, o sofrimento do Servo-Israel é
vigário; Israel teria se oferecido como sacrifício de expiação pelos pecados
das nações. A identificação do Servo com Israel fundamenta-se principalmente em
Isaías 49:3: “Tu és meu servo, és Israel.” O problema para esta interpretação é
muito simples: em 49:5, o Servo nitidamente distinguiu-se de Israel. Por isso,
49:3 não alude ao “Israel nacional, posto que no versículo 5 o Servo tem uma
missão destinada a Israel. O Servo Messiânico é o Israel ideal através de quem
o Senhor será glorificado3.”
Além disto, de acordo com teologia dos profetas clássicos, os exílios
sofridos por Israel — tribos do Norte — e Judá — Sul — foram resultado dos seus
pecados contra a palavra de ETERNO — ver Oséias 8:13—14; Isaías 1:21—31; etc.
Dificilmente algum profeta diria que “Israel” apresentava a perfeição
necessária e requerida à vítima do sacrifício expiatório. “Israel” não tinha
condições para expiar a culpa das nações, porque ele mesmo era culpado e o seu
pecado precisa ser expiado.
2ª — A interpretação
individual. Essa interpretação subdivide-se em pelo menos três
ramificações: a) O servo seria um
personagem escatológico-messiânico; b) O
servo representaria algum personagem importante — Moisés, Joaquim, Jeremias ou
Zorobabel; c) o servo seria o
próprio profeta, o “Deutero-Isaías” — cf. 43:10; 44:26; 50:10; 59:21).
3ª — A interpretação
complexiva que une a interpretação coletiva e a individual. Segundo
essa interpretação, houve uma evolução conceitual no Deutero-Isaías: teria
passado da interpretação do Servo como Israel para a transferência do
sofrimento e da morte vigária de um indivíduo (H. H. Rowley). Para outros
intérpretes, o profeta teria associado as dores do Servo aos sofrimentos dos
exilados na Babilônia. Entretanto, mesmo fazendo essa associação, o quarto
cântico anuncia que um personagem futuro reviveria a história trágica dos
exilados; tratar-se-ia de uma figura escatológica a ser revelada no futuro do
profeta4.
Atualmente a interpretação
individual é a mais aceita entre os estudiosos. Citemos algumas evidências que
apoiam-na:
1ª — No segundo e no terceiro
cânticos o discurso está na primeira pessoa do singular. O Servo fala de suas
dúvidas e crises interiores, tal qual Jeremias — Isaías 49:1-6; 50:4-9.
2ª — Em Isaías 42:1—7, o Servo
refere-se a sua responsabilidade de pregador, e expõe a sua autocompreensão de
profeta. Nessa linha de pensamento, muitos intérpretes identificam o Servo com
o profeta Isaías5. Richard E.
Averbeck admite que, em dois dos cânticos, o profeta Isaías se identifica com o
Servo — Isaías 49:1—6; 50:4—6 —, no entanto, no quarto cântico, o Servo
distingue-se do profeta, e, no contexto de Isaías 40-66 — texto que o profeta
Isaías, no século 8 a.C., visionariamente propõe restauração para os judeus
exilados na Babilônia no século 6 a.C. —, ele apresenta-se como Aquele que
trará Israel à terra prometida6.
Para muitos estudiosos, o Servo
seria uma alusão a Ciro, um tipo do Messias escatológico — cf. Isaías 42:5—7;
44:28; 45:1—7, 12—13. Em Isaías 44:28, Ciro é chamado de “ungido”, literalmente
“messias”. No entanto, uma observação de Isaltino Gomes parece-nos pertinente:
“A função do Servo extrapolaria a de recondução dos exilados. Teria uma
dimensão soteriológica, isto é, com um significado de salvação. Ver o
cumprimento desta dimensão em Ciro é, sem dúvida, fora de sentido. É restringir
o texto no tempo, no espaço e na pessoa7.”
É preciso reconhecer que, no
livro de Isaías, o termo hebraico ‘ebed, “servo”, é aplicado a vários
personagens8: aos “servos do rei” (Is 37:5, 24); àqueles que adoram o
ETERNO (Is 22:20; 56:6; 63:17); aos profetas como porta-vozes de Deus (44:26);
a Isaías (20:3); a Davi (37:35). Além disto, Israel também é apresentado como
um servo através do qual o plano redentor do ETERNO é executado (Is 41:8—9; 43:10;
44:1, 2, 21; 45:4). Nos quatro cânticos do Servo (especialmente no quarto, que
é objeto de análise do presente artigo), por sua vez, o termo ‘ebed não pode
ser aplicado nem para algum personagem do Antigo Testamento nem para Israel9. Na verdade, como o presente artigo
demonstrará nas páginas subsequentes, o quarto cântico (Is 52:13 — 53:12)
descreve o “Servo do Senhor” realizando uma obra que nenhum
outro personagem do Antigo Testamento realizou.
É oportuno notar que a comunidade
de Qumram relacionava o Servo a um personagem que futuramente seria levantado pelo
ETERNO. Os qumranitas aguardavam um Messias que não somente sofreria e seria
humilhado, mas também seria exaltado e glorificado. É o que se lê em um hino
que está entre os rolos descobertos no Mar Morto:
[Quem] foi desprezado como [eu? E
quem] foi rejeitado [pelos homens] como eu? Quem, como eu, suportou todas as
aflições? Quem se compara a mim na resistência do mal? [...] Quem foi
considerado desprezível como eu e, no entanto, quem é igual a mim em minha
glória10?
Ao que parece, quando os autores
do Novo Testamento aplicaram o texto isaiano a Cristo, eles demonstraram que as
expectativas que os qumranitas alimentavam em relação ao Messias começaram a se
cumprir na Pessoa de Jesus de Nazaré.
Mas será que Isaías 52:13 — 53:12
realmente apresenta a expectativa de que o Servo do ETERNO seria um personagem
messiânico, que futuramente seria levantado pelo ETERNO para resgatar o seu
povo dos seus pecados? Será que os autores do Novo Testamento, ao aplicarem o
quarto cântico a Cristo, não estariam promovendo uma reinterpretação cristã
desconectada do sentido original do texto de Isaías? Propomos então uma análise
do texto isaiano para averiguar essas questões.
Análise exegética
Os capítulos de Isaías 40—55
apresentam uma palavra de consolo e esperança para o povo de Deus. Essa parte
do livro de Isaías pode ser resumida em
Isaías 40:1
Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus.
Do ponto de vista teológico, Deus
apresenta-se como Salvador e Resgatador de Israel — Isaías 43:1, 14; 52:3,9. Em
Isaías 51:1 a 52:12, texto que precede o quarto cântico (52:13 — 53:12), lemos
palavras de consolo para a Sião que foi assolada por nações ímpias. Contudo, em
52:13 — 53:12, Deus não esmaga essas nações que destruíram Judá, mas esmaga o
seu próprio Servo, para através Dele propor salvação para todos os
transgressores. Portanto, Isaías 52:13 — 53:12 descreve como Deus iria efetuar
a salvação prometida não somente em Isaías 51:1 a 52:12, mas em todos os
capítulos de Isaías 40—55.
Quanto à estrutura, Isaías 52:13
— 53:12 é composto por três estrofes, cada qual enfocando um tema relacionado
ao Servo:
1ª — 52:13—15: a exaltação do
Servo
2ª — 53:1—3: a rejeição do Servo
3ª — 53:4—6: a morte vigária do
Servo
4ª — 53:7—9: a submissão do Servo
5ª — 53:10—12: o triunfo do Servo
CONTINUA...
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O texto original poderá ser
acessado por meio desse link aqui:
Luciano R. Peterlevitz
Bacharel em Teologia (FTBC e
FATEO/UMESP); Mestre e Doutor em Ciências da Religião, na área de Literatura e
Religião no Mundo Bíblico, pela Universidade Metodista de São Paulo.
Coordenador Acadêmico da Faculdade Teológica Batista de Campinas, onde também
leciona Hebraico, Antigo Testamento e Hermenêutica Bíblica nos cursos de
Bacharelado em Teologia e Pós-graduação em Exposição Bíblica.
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
PS.
Pedimos a todos os nossos leitores que puderem que “curtam” nossa página no
Facebook através do seguinte link:
Desde
já agradecemos a todos.
______________________________________________________
1 Bernhard Duhm, Das Buch Jesaja,
Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1892, 458 p.
2 Richard E. Averbeck, “Christian Interpretations
of Isaiah 53”. In: Darrell L. Bock; Mitch Glaser, The Gospel According to
Isaiah 53: Encountering the Suffering Servant in Jewish and Christian Theology,
Grand Rapids, Kregel Publications, 2012, p. 41-45; Werner H. Schmidt,
Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994. p. 252-254; E.
Sellin; G. Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Editora Academia
Cristã/Paulus, 2012, p. 534-538.
3 Nota de rodapé da New
Internacional Version.
4 J. Steinmann, O livro da
consolação de Israel e os profetas da volta do exílio, São Paulo, Edições
Paulinas, p. 193-194.
5 E. Sellin; G. Fohrer, Introdução ao Antigo
Testamento, p. 536; Hans-Jürgen Hermisson, “The Fourth Servant Song in the
Contexto of Second Isaiah”. In: Bernd Janowski; Peter Stuhlmacher (ed.), The
Suffering Servant: Isaiah 53 in Jewish and Christian Sources, Grand Rapids,
Eerdmans Publishing, 2004, p. 45-47.
6 Richard E. Averbeck, “Christian
Interpretations of Isaiah 53”, p. 33-60.
7 Isaltino Gomes Coelho Filho,
Isaías: o Evangelho do Antigo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 2001, p. 151.
8 Gerard van Groningen, Revelação
messiânica no Antigo Testamento: a origem divina do conceito messiânico e o seu
desdobramento progressivo, 2ª edição, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003,
p. 556-557.
9 Gerard van Groningen, Revelação
messiânica no Antigo Testamento, p. 557-589.
10 Israel Knohl, O Messias antes
de Jesus, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 2001, p. 28, 31.
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