O artigo abaixo é de autoria do
professor Wilson Roberto Vieira Ferreira. A expressão tautismo é um neologismo criado pelo francês Lucien Sfez que une as
palavras tautologia ou repetição com autismo. Dessa maneira, o tauismo se
refere a um indivíduo, ou organização, preso em seu próprio silêncio do mesmo
modo em que um autista se encontra prisioneiro de sua fortaleza interior.
Globo
expõe metástase do tautismo na tragédia da Chapecoense
Invasão de privacidade e
exploração sensacionalista das emoções são traços generalizados na cobertura de
grandes tragédias pela mídia. Porém, com a Globo há um elemento mais insidioso:
depois de décadas exercendo o monopólio político e comunicacional no País, sua
autocentralidade entrou em metástase através do tautismo (autismo +
tautologia). A extensa cobertura da tragédia do desastre aéreo do time da
Chapecoense deixou mais explícito esse estado patológico no qual a emissora só
consegue olhar para além dos muros cenográficos do Projac através de
referências que faz de si mesma. Do “turbilhão de emoções” da narração do
velório coletivo por Galvão Bueno à insistência como repórteres e locutores
tiveram que demonstrar a si mesmos emocionados (chegando a fazer “selfies” com
celulares), chorando e até consolados pela mãe de um dos jogadores, é como se o
tempo todo repetissem: “tenho emoções, logo a tragédia é real!”. Chegando a um
surreal “Efeito Heisenberg”: o global Galvão Bueno narrando o outro global Cid
Moreira lendo a Bíblia com a mesma inflexão de voz com que lia as notícias do
“Jornal Nacional” e narrava as peripécias do Mister M.
O hábito do cachimbo entorta a
boca. Por décadas a TV Globo usou e abusou do recurso de metalinguagem (falar
de si mesma) como forma de demonstração do seu monopólio e poder absoluto na
comunicação social brasileira: não se limitava transmitir um acontecimento. O
acontecimento era a Globo transformando o acontecimento em notícia – o repórter
sempre foi o protagonista da notícia enquanto a História sempre garantiu
exclusividade e pioneirismo para a emissora.
A deferência como o técnico da
Itália Enzo Bearzot tratou em toda Copa de 1982 o repórter Ernesto Paglia, a
amizade exclusiva de Galvão Bueno com Airton Senna, a forma como praticamente a
emissora salvou a cidade do Rio de Janeiro nas enchentes de 1966, a emissora
que virou notícia de si mesma com o sequestro de William Waack por forças de
segurança de Saddam Hussein na Guerra do Golfo, o jornalista Reginaldo Leme
escrevendo o prefácio do livro do CEO da Fórmula 1 Bernie Eclestone etc.
Passagens que a emissora sempre
fez questão em destacar, como se a História sempre conspirasse para as câmeras
da Globo.
Embora mantenha seu poder
econômico e político graças, entre outras coisas, ao BV (Bônus por Volume) para
garantir a maior parte do bolo das verbas publicitárias, nos últimos anos a
Globo vem sofrendo crescente queda nas audiências e a concorrência das tecnologias
de convergência e Internet.
Como destacamos em postagem
anterior, a reação global foi abandonar a estética space opera de Hans Donner
(adotando um visual mais “orgânico”, deixando o artificialismo metálico) e
mergulhar ainda mais na metalinguagem como demonstração de que ainda continua
poderosa e influente – veja artigo sobre esse assunto por meio do link abaixo:
http://cinegnose.blogspot.com.br/2014/05/globo-reaje-crise-de-audiencia-e.html
Porém, o cachimbo entortou a
boca: essa obsessão pela metalinguagem entrou em metástase, resultando na
patologia do tautismo – autismo + tautologia. De tanto falar de si mesma, criou
o “fechamento operacional” de um sistema que se tornou obeso – a audiência já
não sustenta a folha de pagamento, dependendo a emissora das gordas verbas
publicitárias governamentais.
De tão obesa e fechada em si
mesma, simplesmente a emissora não consegue mais ver o mundo do outro lado dos
muros do Jardim Botânico e da cenografia do Projac. O exterior somente é
traduzido a partir de uma descrição que a Globo faz de si mesma.
Ao lado das telenovelas, o
futebol é prioridade comercial da TV Globo. Dona do futebol brasileiro (a ponto
de “antecipar” com horas de antecedência resultado de sorteio da final da Copa
do Brasil – ver aqui: http://cinegnose.blogspot.com.br/2016/11/tautismo-da-globo-preve-resultado-de.html - a tragédia do acidente aéreo que vitimou o time da Chapecoense mereceu uma
extensa cobertura. Sendo o auge a transmissão de seis horas do velório coletivo
em Chapecó, na Arena Condá.
Para quem estuda a evolução das
mídias, as transmissões ao vivo ou coberturas extensivas , principalmente de
uma emissora em estado de metástase tautista, é uma oportunidade de obter
flagrantes dessa tradução autorreferencial que a Globo faz do mundo.
“Tenho emoções, logo a tragédia é
real”
Que ao longo da evolução da
linguagem televisiva os jornalistas deixaram de ser simples repórteres para se
transformarem em protagonistas das notícias, não é nenhuma novidade.
Porém, na Globo esse traço do
telejornalismo também alcançou a metástase: as imagens por si mesmas parecem
não conseguir expressar a dimensão exata da tragédia e tristeza que se abateu
sobre a Chapecoense, sua torcida e o País. Repórteres e locutores devem
constantemente abandonar a função referencial da linguagem para insistirem na
função emotiva, centrada no receptor – só para relembrar, há seis funções da
linguagem: referencial (sobre o quê a comunicação fala), emotiva (emissor),
conativa ou apelativa (receptor), poética (mensagem), fática (canal),
metalinguagem (a comunicação falando dela mesma).
No contexto atual da emissora é
sintomática a escolha de Galvão Bueno para narrar o velório coletivo em
Chapecó. Se em 1994 o velório de Ayrton Senna em São Paulo, narrado ao vivo por
William Bonner, deu um caráter jornalístico hard news para o evento, agora, com
Bueno, parece que foi transferido para a editoria do jornalismo esportivo.
E não foi para menos. O registro
solene jornalístico foi substituído pelo “turbilhão de emoções que não para” –
sem conter a emoção, chorou: “não aguento mais”, disse perdendo a voz diversas
vezes na transmissão.
O que fez a atenção do espectador
diversas vezes concentra-se nele, chegando a comover internautas em redes
sociais elevando seu nome mais comentados no Twitter.
É uma das características da
linguagem tautista: fechada em si mesma, a imagem deve contar com redundância
sígnica do emissor, da mesma maneira que o Papa Léguas tinha que sublinhar sua
velocidade para as crianças (e, por isso, jamais o Coiote o pegaria) fazendo
“bip-bip” como buzina de carro.
É como se Galvão Bueno quisesse
dizer a todo momento: “vejam como estou emocionado, a tragédia é real!”. Assim
como um correspondente ao vivo de Washington tem que se posicionar diante do
Capitólio ou da Casa Branca para que o telespectador acredite que de fato o
repórter está lá – autismo (a função emotiva supera a referencial) e tautologia
(repetição na função emotiva daquilo que poderíamos ver apenas nas imagens).
Resultado: infantilização da
transmissão, análoga à linguagem das onomatopeias dos desenhos animados.
“Vejam eu transmitindo, logo é
verdade!”
A insistente centralidade no
jornalista (como se ele antecedesse o próprio acontecimento) criou duas
insólitas situações na cobertura dos eventos de Chapecó.
Na edição do Jornal Nacional do
sábado (03/11) a repórter Kiria Meurer (da RBS, afiliada à Globo) parou diante
do ônibus que levaria os familiares ao aeroporto onde seriam recebidos os
corpos. “Eu consegui um lugarzinho aqui no ônibus, vou acompanhar esses
familiares. A partir daqui, a nossa câmera, com o nosso cinegrafista, não pode
gravar. Então vou gravando com o meu celular”, disse ela - assista ao vídeo por meio do link abaixo a partir dos 55:30 minutos:
https://www.youtube.com/watch?v=pbTkQgjbLx4
O auge foi quando Meurer filmou a
si mesma com seu celular percorrendo a área do velório. Além da consciente
invasão de privacidade (talvez um traquejo de anos de pauta sobre corrupção com
câmeras secretas para mostrar corruptos amealhando dinheiro vivo – de novo o
cachimbo entortou a boca), demonstra a obsessão metalinguística tautista de
querer dizer sempre: “vejam eu transmitindo. Se transmito, então é verdade!”.
E o segundo episódio explícito de
autorreferência metalinguística foi quando a mãe do goleiro Danilo, “num
momento de tragédia pessoal encontrou forças para consolar o repórter Guido
Nunes da SporTV”. E termina dizendo: “numa demonstração de respeito aos
jornalistas que também morreram...” - veja o vídeo por meio do link abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=zTDCg1zbBNU
O paroxismo de Cid Moreira
Da metástase ao paroxismo. No
ápice de um efeito Heisenberg (efeito no qual ao transmitir acontecimentos, a
mídia na verdade transmite seus próprios efeitos nos acontecimentos – sobre
esse conceito veja aqui: http://cinegnose.blogspot.com.br/2013/06/o-efeito-heisenberg-na-irrealidade.html - eis que vemos um patibular Cid Moreira lendo trechos bíblicos em um episódio
que jamais esse humilde blogueiro poderia imaginar nos mais loucos pesadelos:
Galvão Bueno narrando Cid Moreira.
Jornalista e apresentador do
Jornal Nacional da Globo por 27 anos, a aparição de Cid Moreira como
protagonista na própria transmissão global do velório coletivo foi o sintoma
mais explícito (o efeito Heisenberg) de uma cobertura na qual o tautismo foi
generalizado.
Nesse episódio, a Globo projetou
involuntariamente a si mesma no próprio evento que transmitia.
Além de comprovar como, ao longo
das décadas, a emissora conseguir dominar corações e mentes, de tal maneira que
a busca por conforto espiritual à tragédia veio através da inflexão da voz
familiar que entrou nas casas das famílias de Chapecó por décadas – dessa vez
não mais dando notícias ou narrando as peripécias de Mister M, mas lendo
versículos das cartas do apóstolo Paulo aos Coríntios.
“Nossos companheiros...”
Vinte profissionais de
comunicação morreram no desastre aéreo, entre jornalistas, produtores,
cinegrafista e locutores das emissores Globo, RBS, Fox, Rádio Oeste, Rádio
Super Condá.
Mas somente os profissionais da
Globo e afiliada RBS mereceram, desde o primeiro momento da cobertura, serem
nomeados. Os restantes dos profissionais eram genericamente denominados como
“nossos companheiros”. Ao longo da semana, apenas no canal fechado Globo News
apresentou um infográfico objetivo com a lista completa com nome, foto e a
emissora na qual cada um trabalhava.
Tanto nas edições do Jornal
Nacional como no Fantástico passou a ser informada a lista completa dos
profissionais, porém com a evidente autocentralização tautista que contamina a
descrição que a Globo faz do mundo exterior: para cada profissional da Fox
Sports citado, era destacado o período em que cada um deles havia trabalhado na
SporTV, jornal O Globo, rádio Globo ou na TV Globo.
Ou seja, somente pareciam merecer
figurar na descrição completa por serem ex-profissionais das organizações
Globo.
Exploração sensacionalista das
emoções e invasão de privacidade são elementos generalizados nas coberturas que
a grande mídia sempre faz nas tragédias.
Mas na Globo há um elemento mais
crônico: seu monopólio e estrutura obesa que não mais se sustenta (a não ser
através da intervenção na política nacional) criou uma patologia (autocentralidade)
que entrou em fase de metástase – o tautismo.
O artigo original poderá ser
visto por meio do seguinte link:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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Desde já agradecemos a todos.
Os comentários não representam a opinião do Blog O Grande Diálogo; a responsabilidade é do autor da mensagem, sujeito à legislação brasileira.
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