O artigo abaixo é da autoria de
Ana Costa e foi originalmente publicado no site PSICANALISTAS PELA DEMOCRACIA.
O mesmo apresenta uma análise do filme 13 Minutos
que narra uma história verídica de um atentando para matar Hitler durante no
início da II Guerra Mundial.
“Sobre atos que interpretam” Por
Ana Costa
O filme 13 minutos, dirigido por Oliver Hirschbiegel, não tem a mesma força
que seu ótimo A queda! As últimas
horas de Hitler. No entanto, traz um elemento que me interessou particularmente
e que tratarei aqui brevemente. O filme propõe-se a resgatar um episódio da
vida de Georg Elser (Christian Friedel), que o guindou a personagem histórico,
em que efetivou um atentado fracassado contra Adolf Hitler, em 1939. Um
subtexto implícito do filme é: se Hitler não tivesse saído treze minutos antes
do previsto – tempo que a bomba explodiu – Elser teria sozinho impedido os
horrores que aconteceram depois, na segunda grande guerra.
Podemos reconhecer algo que se
aproxima ao tema do herói, consistente com a história pessoal de Elser em que o
filme se detém. Ele foi o filho chamado a intervir para limitar os excessos de
seu pai alcoolista, que levou à perda da casa em que moravam, levando a família
à ruína. Reproduziu, em sua paixão por Elsa (Katharina Schüttler), que era
casada com outro alcoolista, os mesmos moldes de sua família de origem. Em
flashbacks o filme transita pela vida de Elser, anterior à sua prisão. Não se
adequava a nenhuma ordem, preferindo sempre as margens dos compromissos, como
músico e namorador, passando por muitas mulheres sem ficar com nenhuma, até que
encontra Elsa. Mesmo seu flerte com os comunistas, da Frente Vermelha de
Lutadores, não era sustentado por convicções, mas por relações de amizade. A
ressaltar-se a foto do anúncio do filme, em que o personagem aparece no meio do
exército nazista: todos estão de uniforme, com seus topetes lisos penteados
para o lado – como Hitler – e ele no meio, com o topete do cabelo rebelde e
ondulado, penteado para o lado oposto. Lembra fotos que referem um homem a se
destacar na multidão. Sem forçar demais, a ótica pela qual Elser é retratado no
filme parece corresponder a análises freudianas sobre o tema do herói: aquele
que não se submete a ordens instituídas, porque reconhece nelas o selo do gozo
excessivo, traço do pai perverso. É aquele que subverte uma noção tão cara a
nossa cultura, o tema do indivíduo.
A última afirmação precisa
desdobramentos maiores dos que me proponho aqui, neste espaço de uma crônica.
Farei uma breve aproximação, deixando para outro trabalho as fundamentações
necessárias. Seria possível “enquadrar” Elser como indivíduo? Respondo
negativamente, como já devo ter deixado implícito. Proponho uma outra
categoria, a do envelope da carta roubada – tal como Lacan desenvolveu a partir
do conto de Edgar Alan Poe. Afinal de contas, tratou-se de um embate entre as
forças policiais/militares nazistas, buscando o que estaria escondido num texto
que tudo mostrava – a narrativa de Elser foi de que teria feito tudo sozinho (o
que se mostra do envelope da carta) – e um homem na sua singularidade. Que
Elser não fosse um “dente” de uma grande maquinaria, a arquitetar um plano
contra o onipotente Hitler, que ele tivesse feito tudo sozinho, revelava que um
homem do povo, sem pretensões, poderia ser oponente suficiente para derrotar o
condutor do Terceiro Reich. A polícia deveria descobrir o texto que
supostamente o envelope esconderia. Hitler exigiu que fosse revelada uma trama
arquitetada por oponentes de peso. Como tudo levava somente a Elser, seis anos
depois, no apagar das luzes e semanas antes do final da guerra, o próprio
militar que aprisionou Elser foi condenado e morto como sendo o cabeça
responsável pelo atentado, numa trama forjada a fim de não deixar cair a
máscara. A ironia de tal destino situa o sistema paranoico erguendo suas bases
no ponto em que se revela sua impotência. Tal como um herói trágico, que
despreza valores instituintes de um pai perverso, Elser não buscava algo para
si e, nesse sentido, não temia perder, mesmo que de sua vida se tratasse. Achar
que, sozinho, seria capaz de matar um líder “blindado” pela parafernália
militar nazista, interpreta o que as encenações e propagandas buscavam velar:
toda onipotência se ergue no lugar da impotência. Hitler era um fraco, assim
como o pai de Elser, não despertando seu temor.
Tal perspectiva narrativa poderia
ser criticada como simplista, ou mesmo subjetivista. No entanto, parece-me
trazer um elemento de grande interesse, situado numa subversão possível ao que
entendemos como indivíduo. Este último sustenta-se das tramas que instituem os
valores fálicos, como imagens acabadas e uniformes, na busca de reconhecimento
das bases de um poder. Nesse sentido, destaco a relevância de uma interpretação
de Marilena Chauí, a respeito da realização máxima do nosso individualismo
atual: o indivíduo que se crê empresa de si mesmo. Ele se crê livre por ter
dispensado o Estado, erigindo-se em empresa de si (de sua formação, de seus
“poderes” de negociação, de seu investimento privado em aposentadoria, etc.)
para negociar com outras empresas, frente as quais será reconhecido e
valorizado para um posto. O que as encenações e propagandas encobrem é a
submissão a um sistema que produz uma crença de liberdade, sem que o sujeito
reconheça que está submetido, pensando ter poderes ali onde é escravo.
Utilizei-me da expressão de Chauí
– mesmo que abordando um contexto diferente da análise do filme – para situar o
outro extremo a que o paroxismo da noção de indivíduo pode levar. Temos de um
lado um Estado total (Alemanha nazista), que se confunde com a imagem do líder,
e de outro um indivíduo total (o neoliberalismo), que acredita ter substituído
o Estado. Verso e reverso, encontram-se num mesmo ponto, a busca impossível de
uma totalidade sem perda. Por essa razão somente um outsider, que não se
pautava pela crença na totalidade, que reconhecia impotência na submissão que o
gozo carrega, poderia levantar a cortina e revelar a farsa.
Termino com um pequeno comentário
de uma imagem recente, que me fez ligar situações aparentemente díspares. A
imagem a que me refiro é de Raduan Nassar, sentado em silêncio olhando para
algum ponto da plateia, depois de seu discurso crítico ao governo, na ocasião
em que foi homenageado com o prêmio Camões de literatura. Nassar assim
permaneceu enquanto o ministro da cultura, Roberto Freire, se perde numa fala
vazia. Uma fala que se pauta em ofensas e desconhecimentos, representante de um
governo ilegítimo, que tenta fazer cair a força da posição da fala que o
precedeu. O silêncio de Nassar faz revelar a impotência do discurso de Freire,
na medida em que não reconhece este como interlocutor. Nassar reiteradas vezes
recusou ser representante de discursos instituintes de um valor de mercado,
mesmo que das escolas literárias. Lavoura arcaica é uma obra que continua ímpar
na literatura. Podemos reconhecer nela alguns elementos em causa no que antes
destaquei sobre a história de Elser, da relação entre um filho e a lei/gozo do
pai. O romance traz a força de uma narrativa, que não dispensa o sentido, mas
que sabe fazer ato de linguagem poética, por meio da fala de um filho, que se
faz equivaler à meia verdade do pai.
O artigo original poderá ser
acessado por meio do link abaixo:
O trailer do filme poderá ser
visto por meio do link abaixo:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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