As transgressões cometidas contra a lei de Deus são secundárias quando comparadas com as transgressões que são cometidas a pretexto de se obedecer aos mandamentos da lei de Deus.
A CRISTANDADE(1)
Søren Kierkegaard
Foi Søren Kierkegaard, o filósofo dinamarquês, quem expressou de maneira mais contundente a realidade acerca do que vamos chamar doravante de “cristandade”. No seu “O Instante” no capítulo 5, no verso 2 podemos ler: “A cristandade é um esforço da raça humana para voltar a andar de quatro, de se livrar do Cristianismo, mas fazê-lo de modo classudo sob o pretexto de que é a representação do verdadeiro Cristianismo, clamando que este é o Cristianismo aperfeiçoado.”2
Esta cristandade, como se apresenta não só no Brasil, mas ao redor do mundo, não poderia ter sido melhor descrita. É hipócrita e pretensiosa. Sua linguagem é sacralizada e pretende que fala sempre a verdade. Para os liberais é “verdade” aquilo que eles mesmos definem por “verdade”. Para os ortodoxos é “verdade” aquilo que eles interpretam como “verdade”. De um modo ou de outro esta “verdade” é sempre humana e usa a Bíblia como uma mera referência ou pretexto. A cristandade produzida tanto por liberais quanto por ortodoxos fala em nome de Deus, mas reproduz as obras do diabo. Comete os maiores crimes em nome de Deus, mas pretende ser pura e inocente. De fato, diante do que podemos observar temos que nos perguntar: “Como foi possível dentro da história do Cristianismo, o surgimento de uma sociedade, de uma cultura e de uma civilização até, que são o exato oposto daquilo que podemos ler na Bíblia, seja na lei de Deus, nos profetas, nos ensinos de Jesus ou nos escritos de Paulo?”3 Isto é o que estamos chamando de cristandade. Este monstro que pretende ser a manifestação do Cristianismo verdadeiro ou aperfeiçoado.
Esta cristandade já tem sido acusada de uma lista extremamente extensa de crimes, fraudes e decepções que certamente não podem encontrar justificativa nas páginas das Escrituras Sagradas. Como é impossível justificar tais práticas nas páginas da Escrituras a Cristandade tem se especializado em moldar e reinterpretar as Escrituras de acordo com suas conveniências. As idéias expressadas pelo Senhor Jesus (que era a palavra encarnada de Deus), deram lugar a uma ideologia perversa que se preocupa exclusivamente com a manutenção e a justificação das injustiças mais terríveis que se possam imaginar. Toda esta prática constitui-se em uma grave contradição que eventualmente, somente uma nova reforma poderia remediar.
AS CONTRADIÇÕES
Como é possível um movimento que pretende falar, defender e proclamar a verdade estar tão envolvido em mentiras e embustes de todas as ordens? Como é possível que aqueles que se intitulam filhos de Deus, manifestem de forma tão clara as obras do diabo? Como é possível que aqueles que estão meramente de passagem (peregrinando) neste mundo se preocupem tanto com bens materiais (incluindo-se ai monumentais construções de edifícios para uso religioso) e prosperidade? Como é possível que aqueles que se classificam como os campeões do amor ao próximo não hesitem, nem por um instante, em trucidar os que lhes contrariam? Como é possível que aqueles que se autoproclamam como os guardiões da lei de Deus, cometam, sob o pretexto de guardar esta mesma lei, os maiores crimes contra o próximo? Como é possível que aqueles que destruíram com lógica insofismável a pretensão das falsas religiões sejam tão faltos de autocrítica? Como é possível que apesar das inúmeras versões e traduções da Bíblia tenhamos nos especializado em desobedecer aos mandamentos do Senhor? A situação chega a ser tão ridícula que já circula um ditado que diz: “crente, parente e água quente é o que pela a gente!”4.
Entretanto, mesmo faltando uma autocrítica pertinente, uma das características do verdadeiro Cristianismo é que ele é confrontado, de forma permanente, pela própria verdade que proclama e não pode fugir dela. Uma leitura, mesmo que superficial do livro de Deuteronômio, não poderia deixar de causar profunda impressão em nós acerca da importância de praticar os ensinos de Deus. No sentido de “praticar” nós podemos encontrar os verbos “guardar” (6 vezes), “cumprir” (14 vezes), “obedecer” (1 vez) e “ouvir” (7 vezes). E porque toda esta ênfase em praticar os mandamentos de Deus? Porque somente aqueles que obedecem aos mandamentos de Deus é que viverão. Da mesma maneira o Senhor nos ensina através do profeta Ezequiel, revelando o verdadeiro estado do coração humano, que ouvir somente não é suficiente: “Eles vêm a ti, como o povo costuma vir, e se assentam diante de ti como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois, com a boca, professam muito amor, mas o coração só ambiciona lucro (Ezequiel 33:31)”.
O Senhor Jesus também deixou claro que os verdadeiros cristãos são os que praticam os mandamentos do Senhor: “Ele, porém, lhes respondeu: Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam (Lucas 8:21)”. Não podemos deixar de mencionar aqui a parábola que Jesus contou acerca do que acontece com as pessoas que ouvem e põe em prática Suas palavras e aquelas que apenas ouvem. Deixemos que Jesus mesmo nos ensine: ”Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína (Mateus 7:24 a 27)”. Novamente o Senhor Jesus ao ministrar a grande lição prática de lavar os pés dos discípulos concluiu aquele momento com estas palavras: ”Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes (João 17:13)”.
Também o apóstolo Paulo não deixa por menos ao transformar uma boa parte das suas epístolas em admoestações e exortações que visam incentivar os cristãos a mostrarem, por meio da obediência e do fazer, a fé que possuem e manifestarem desta mesma maneira a fidelidade a Jesus. É este mesmo apóstolo Paulo quem nos chama a atenção para o fato de que somos salvos pela fé, mediante a graça, mas somos salvos para andar em boas obras: ”Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas (Efésios 2:8 a 10)”. As boas obras são parte do plano de Deus para nós. Ele as preparou de antemão e nos criou em Cristo Jesus para que andássemos nelas. O que todas estas passagens nos ensinam é que obediência integral aos mandamentos de Deus é a única prova (seja interior, seja exterior) da nossa autenticidade como cristãos.
OS CRÍTICOS
Quando pessoas levantam suas vozes para criticar a Cristandade, não estão elas cobertas de razão? Voltaire, em suas “Cartas Inglesas” nos conta um fato ocorrido quando visitava o interior da Inglaterra e fez uma pausa em uma pequena igreja Quacre para descansar um pouco. Era meio de semana, por volta das 3 da tarde, quando ele resolveu entrar na pequena construção para recobrar o ânimo para a caminhada. Estava ali sozinho, sentado em um dos bancos, entretido com seus pensamentos, quando de repente se viu diante de um homem que lhe disse: ”Desculpe-me senhor, mas o senhor está sentado no meu lugar!”, apesar de a igreja estar completamente vazia. Voltaire foi um cáustico crítico da Cristandade, e com razão. Juntamente com Voltaire, outros críticos como o socialista Karl Marx e o anarquista Bakounine, e mesmo filósofos como Holbach(5) e Feuerbach (6) não são apenas e exclusivamente nossos inimigos como nos ensinaram. Devem ser vistos também como nossos amigos. Como pessoas que percebem as contradições em nós e nos apontam nossos erros. Deveríamos ter humildade e reconhecer que erramos em vez de apontar o dedo em riste e acusá-los de ateus! Suas críticas apenas nos mostram quão distante a Cristandade se encontra do verdadeiro Cristianismo como revelado na palavra de Deus. Eles também nos apontam a intensidade do desvio a que a Cristandade tem sujeitado a palavra de Deus. É uma pena que nosso educador, poeta e teólogo presbiteriano Ruben Alves tenha sucumbido aos argumentos destes homens sem aproveitá-los para lutar por uma nova reforma.
Feuerbach
A QUEBRA DA LEI
Por muitos séculos nós temos nos escondido atrás de frases como: “Certamente nosso comportamento não tem sido exemplar, mas devemos levar em conta a beleza, a pureza e a santidade das escrituras”.
Não creio que seja possível dissociar as escrituras da nossa prática diária. Hoje estamos tão confusos que nós orgulhamos das belas Bíblias encadernadas com couro e bandas douradas, mas não reconhecemos nossa diuturna desobediência aos seus princípios. Devemos nos lembrar de Moisés e da entrega da lei de Deus, gravada em pedras, ao povo de Israel.
Em Êxodo 19 nos temos a descrição da aliança feita entre Deus e o povo de Israel. Por aquela aliança, Deus prometia ao povo que: “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha (19:5)”. E mais: “vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel (19:6)”. Moisés foi então e relatou as palavras do Senhor ao povo. O povo de Israel ao saber as intenções de Deus, não teve a menor dúvida e aceitou a aliança com as seguintes palavras: “Então, o povo respondeu à uma: Tudo o que o SENHOR falou faremos. E Moisés relatou ao SENHOR as palavras do povo (19:8)”. A aliança estava selada. Mas a aliança precisava ser regulamentada. As relações entre os homens e Deus e entre os seres humanos uns com os outros precisavam ser organizadas. Daí surge a lei de Deus que se estende de Êxodo 20 até a fim do livro de Deuteronômio.
Todavia a lei pode ser resumida em dez mandamentos principais (os dez mandamentos como descritos em Êxodo 20), onde os quatro primeiros mandamentos regulamentam as relações verticais, entre Deus e os seres humanos, e os seis últimos mandamentos regulamentam as relações horizontais, entre os seres humanos uns com os outros. Mas ainda assim a lei poderia ser resumida ainda mais em dois grandes mandamentos. O primeiro encontramos em Deuteronômio 6:5 onde lemos: “Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força”. E o segundo pode ser encontrado em Levítico 19:18 onde nos é dito: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR”. Em Êxodo 24 temos a repetição da aliança, só que neste contexto nos é dito que: “Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do SENHOR e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o SENHOR faremos (24:3)”. E agora somos informados que Moisés “escreveu todas as palavras do SENHOR e, tendo-se levantado pela manhã de madrugada, erigiu um altar ao pé do monte e doze colunas, segundo as doze tribos de Israel (24:4)”.
Agradou ao Senhor fornecer uma cópia grafada em pedras pelo próprio dedo de Deus dos dez mandamentos, como um sinal e um memorial dos compromissos que o povo de Israel estava assumindo naquele dia. Moisés, então, sobe ao monte Sinai acompanhado de Josué que fica a meio caminho do local em que Deus se encontrou com Moisés. Quando Deus acabou de falar com ele “no monte Sinai, deu a Moisés as duas tábuas do Testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus (Êxodo 31:18)”. Mais adiante nos é dito que: “E, voltando-se, desceu Moisés do monte com as duas tábuas do Testemunho nas mãos, tábuas escritas de ambos os lados; de um e de outro lado estavam escritas. As tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas (Êxodo 32:15 e 16)”.
Entretanto, enquanto Moisés se encontrava no alto do Sinai recebendo de Deus instruções diversas e a cópia em pedra dos dez mandamentos, o povo de Israel, aquele mesmo povo que havia se comprometido mais de uma vez em fazer tudo o que o Senhor havia ordenado, já estava se desviando e adorando um bezerro de ouro, que era fruto da engenhosidade artística de Arão, o próprio irmão de Moisés! Deus, então avisa Moisés do que estava ocorrendo com palavras inequívocas: “Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste sair do Egito, se corrompeu e depressa se desviou do caminho que lhe havia eu ordenado; fez para si um bezerro fundido, e o adorou, e lhe sacrificou, e diz: São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito (Êxodo 32:7 e 8)”.
Moisés então desce o monte Sinai. Encontra-se com Josué que lhe diz estar ouvindo um alvoroço de guerra vindo do arraial, mas Moisés, estando melhor informado, lhe diz que o barulho não é de guerra e sim de festa (Êxodo 32:17 e 18). Moisés segue em frente e ao se aproximar do arraial, antes de entrar no mesmo, “acendendo-se-lhe a ira, arrojou das mãos as tábuas e quebrou-as ao pé do monte (Êxodo 32:19)”. Por que teria Moisés feito isto? Por que teria quebrado as tábuas da lei, escritas pelo próprio dedo de Deus? Estaria Moisés demonstrando falta de consideração e respeito pela lei de Deus? Teria Moisés agido impulsivamente, sem medir de maneira apropriada, as conseqüências do seu ato? Muitos acreditam que foi por ter quebrado as tábuas da lei de Deus que Moisés foi proibido por Deus de entrar na terra prometida. Não, Moisés não foi proibido de entrar na terra prometida por ter quebrado as tábuas da lei. Ele também não agiu impulsivamente ao quebrá-las. Quebrando as tábuas da lei, Moisés estava realmente, protegendo o povo de Israel de ser considerado transgressor da lei pelo próprio Deus, o que traria a destruição de todo o povo. O raciocínio de Moisés foi simples: o povo já quebrou mesmo os mandamentos de Deus nos seus corações; de que adianta preservar os mandamentos escritos em pedra? Serviriam apenas como prova contundente contra o povo no julgamento de Deus. Melhor quebrá-las! Para nada serve a lei de Deus se o povo de Deus não obedecer a mesma. Uma vez quebrada nos corações, a lei escrita em pedra, nada vale. Ou melhor, vale somente para condenar. Moisés entendia isto perfeitamente, daí sua atitude de quebrar as tábuas da lei.
Ao contrário de Moisés, hoje nos orgulhamos da variedade de traduções e versões das escrituras, da beleza e qualidade das encadernações e da sabedoria dos comentários dos anotadores ao mesmo tempo em que quebramos os mandamentos de Deus sem o menor pudor. As Bíblias são lindas, maravilhosas e de qualidade inquestionável. Mas seus ensinos são ignorados e despedaçados por nossos corações desobedientes. De que adianta termos lindas Bíblias quando no nosso coração os mandamentos de Deus são de contínuo quebrados? A continuar assim, melhor nos seria lançarmos nossas Bíblias no fogo. Pelo menos poderíamos alegar, no juízo de Deus, que não tínhamos acesso aos Seus mandamentos. Mas não, na nossa cegueira defendemos a historicidade, a verdade e a inerrância da palavra de Deus ao mesmo tempo em que fazemos tudo e de todas as maneiras para indicar que a palavra de Deus, que honramos com nossos lábios é desobedecida em nossos corações de maneira completa. Mas isto não é privilégio nosso somente. Como acabamos de ver o povo de Israel agia da mesma maneira não só nos dias de Moisés como nos dias do profeta Isaías onde lemos: “O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu (Isaías 29:13)”. E mesmo nos dias de Jesus, o comportamento não era diferente, pois em Mateus 15:8 nós lemos: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”.
REVELAÇÃO E PRÁTICA
Como dissemos anteriormente é impossível separar a palavra de Deus do modo como o povo de Deus se comporta em relação a esta mesma palavra. Somos nós, através do nosso comportamento, que vindicamos plenamente a palavra de Deus com sendo exatamente isto mesmo: palavra de Deus. Nenhuma palavra revelada será reconhecida como tal se o povo que a proclama não viver uma vida coerente com a mesma. É a vida do cristão que dá testemunho da revelação de Deus e mais, dá significado a esta mesma revelação. São nossas ações que proclamam ao mundo qual é a vontade revelada de Deus. Começando na versão mais concisa dos mandamentos de Deus (amarás a Deus e amaras ao teu próximo), e seguindo em direção à versão mais ampliada (os dez mandamentos), até atingirmos a totalidade da revelação (a Bíblia inteira), são nossas atitudes que irão ancorar e estabelecer a revelação de Deus como tal. Se a verdade não for manifesta em nossas vidas e não nos conformarmos a ela, então, a verdade como a defendemos não existe.
A crítica iluminista, que devastou de maneira substancial a Cristandade a partir do século XVIII, tinha fundamento ao afirmar que a revelação defendida pelos cristãos era falsa, porque a própria vida dos assim chamados cristãos estava eivada de falsidades. Quando agimos assim, com práticas que são flagrantemente contrárias ao ensino da verdade revelada por Deus, nós transformamos esta mesma verdade em algo falso, imaginário, ilusório e ideológico. A escolha é clara diante de nós. Ou assumimos que somos cristãos com tudo o que está implícito em termos de obediência ou não estamos fazendo nada além de admitir que nossos ensinos são falsos. É este comportamento, contrário a tudo que está escrito na Bíblia, que estamos chamando de contraditório e que constitui-se em uma verdadeira perversão do que Deus intencionava ao nos dar Sua revelação e nos chamar para sermos Seu povo particular.
O OUTRO LADO TAMBÉM NÃO É INOCENTE
A Igreja cristã tem sido acusada dos mais horríveis crimes que se possam imaginar. Mas nem tudo de que nos acusam é necessariamente verdadeiro, especialmente quando pensamos que o que motiva os acusadores no início do século XXI, na grande maioria das vezes, é um paganismo elementar embebido em um politeísmo liberal. Um caso clássico que ilustra o que estamos dizendo é representado pela linha editorial de revistas como a “Super Interessante” e a “Galileu”. Periodicamente estas revistas apresentam reportagens que visam minar o Cristianismo ao mesmo tempo em que mostram sob uma luz, extremamente favorável, o “xamanismo, o espiritismo e as religiões orientais e tudo que, de uma maneira geral, esteja relacionado com a Nova Era”.
Outra ilustração pode ser encontrada no livro escrito por Nina Smart e Steven Konstatine, à guisa de uma Teologia Cristã (7) , onde lemos: “nossa apresentação de uma “darsana” é mais que a apresentação de uma elaboração intelectual. Trata-se, na verdade, de um “tao”, como um “bhakti” ou “jinana”, ou “conhecimento”, de uma vida coberta pelo “li” sacramental. Um estímulo ao “dhyana” ou ao ‘karuma”. É o convite para evitar esquivar-se de ser chamado pelo poder do “avatar”. É impossível reconhecer o que está escrito acima como teologia cristã, por mais que nos esforcemos. Todavia o mesmo serve para confirmar o que dissemos no início deste parágrafo. Outro exemplo ainda é a publicação pela editora HarperCollinsPublishers do livro “The Other Bible” que visa apresentar uma coleção de escritos “inspirados” onde se misturam textos judaicos e da cabala judaica, com textos pretensamente cristãos, produzidos por gnósticos e encontrados na biblioteca de Nag-Hamadi no Egito (8) .
Entretanto, os nossos acusadores encontram a justificativa que precisam para nos acusar de todo tipo de crimes exatamente na inconsistência de nossos atos e na contradição que existe entre nosso discurso e nossos atos. A grande verdade é que a igreja chamada cristã tem adotado como práticas suas os conceitos e ideais da sociedade em que esta imersa. No lugar da palavra profética contra o orgulho religioso, a arrogância eclesiástica e a auto-suficiência da sociedade, temos o silêncio. Em vez de servir como sal e luz no mundo, a igreja tem procurado agradar aos donos do poder e a se conformar às formas de pensamento da cultura dominante. Nossa cegueira é tão grande que existem pessoas que acreditam piamente que nós somos a primeira geração a realmente entender o evangelho.
Nas palavras de Michael S. Horton (9) “existe nos dias de hoje um tremendo espírito de autoconfiança e orgulho: nossos projetos de crescimento da igreja finalmente introduzirão o reino; ou faremos isso realizando sinais e maravilhas; ou lideraremos assumindo as instituições públicas e exercendo pressão política, social e econômica sobre os inimigos de Cristo; outros talvez desejem conquistar o poder descobrindo os recursos internos do indivíduo através das últimas ofertas da psicologia popular; outros demonstrarão autoconfiança reforçando o culto da personalidade, as restrições legalistas e a pressão do meio; finalmente, alguns apelarão para o poder do medo e das paranóias, como se tivessem uma visão interior dos segredos divinos, tal como a data da volta de nosso Senhor. Reuniões evangélicas são freqüentemente marcadas pela mística da singularidade da nossa geração no plano de Deus”. Com isto queremos dizer que não temos nada a ver com os crimes cometidos no passado. Esta postura é semelhante a daquelas pessoas, nos dias de Jesus, que batiam no peito e diziam “Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas!” Soava bonito mas Jesus conseguia ver a implicação do que eles estavam dizendo ao comentar “Assim, contra vós mesmos, testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos pais (Mateus 23:30 a 32)”.
Estas inconsistências têm sido percebidas por muitas pessoas e muitos têm tentado explicar o que aconteceu. Recentemente um espanhol radicado no Brasil, publicou um livro (10) onde alega, entre outras bobagens, que Jesus nunca teve a intenção de formar a igreja cristã. Segundo as pessoas que defendem idéias como estas, nosso espanhol é apenas mais um em uma longa série de pessoas que a cada 5 a 10 anos lançam um livro com esta ideologia. Para eles, os cristãos primitivos esperavam a volta de Jesus em poucos anos. Como está volta não aconteceu, se inventou, então, a igreja com toda sua estrutura hierarquizada e rígida que visava exatamente prover os cristãos com uma maneira organizada para aguardar o longo período entre a primeira e a segunda vindas de Jesus. Outros, como Júlio José Chiavenato, fazem as mais insustentáveis afirmações tais como: “O cristianismo primitivo não continha em si nenhum componente filosófico, mas uma alienação específica, conformando o homem a sofrer resignadamente neste mundo, sem vontade política de modificá-lo” (11).
Juntamente com estas acusações, surgem inúmeras outras que dizem respeito a como o texto do Novo Testamento teria sido alterado para se conformar com a realidade vivida pela igreja. Temos ainda, entre estes, pessoas como o frade franciscano Jacir de Freitas Faria, professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomas de Aquino e no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, que acreditam que havia duas vertentes principais no cristianismo antigo. Uma era comandada por Tiago e a outra pelo apóstolo Paulo. Segundo nosso frade, a vertente paulina venceu e o que temos hoje aí é fruto daquele acontecimento. Se a vertente de Tiago tivesse vencido, nos diz o franciscano, quem pode dizer que tipo de Cristianismo nós teríamos? Ainda de acordo com o frei Jacir, o pecado não existe. Mas onde o senhor aprendeu isto frei Jacir? Ele afirma que aprendeu este ensinamento no evangelho apócrifo e gnóstico de Maria Madalena. E mais, ainda neste mesmo evangelho ele aprendeu que a salvação consiste em “buscar a harmonia comigo mesmo, com os outros e com Deus” (12). Frei Jacir, você erra ao não conhecer nem as escrituras verdadeiras nem o poder de Deus. As acusações e as teorias, como as do Frei Jacir, de Juan Árias, de Júlio Chiavenato e muitos outros, não se sustentam e não é objetivo deste trabalho desmontá-las. Estas teorias vendem bem e satisfazem as idéias de quem as agrega e as publica, é só isto. Sobre estes autores ainda pesa a condenação que encontramos em João 3:36, independente de tais pessoas acreditarem ou não nas palavras de Jesus.
Mas isto não acontece somente com a cristandade. Outras filosofias como o Marxismo e o Existencialismo também sofrem destas contradições, mas elas têm a seu favor não pretenderem o status de revelação. Tanto Marx quanto Kierkegaard se esforçaram para impedir que suas idéias fossem reduzidas a meros mecanismos ideológicos. O comunismo soviético assumiu o caráter do seu expoente maior, Vladimir Lênin, que contradisse na prática, tudo que havia escrito. Poucos anos depois da Revolução Bolchevistas, muitos comunistas, da primeira hora, se tornaram membros da esquerda anti-Bolchevista, que denunciava a Revolução Russa como uma perversão da extrema direita do Marxismo. É impossível negarmos crédito a estes quando comparamos o Brasil da ditadura de direita (1964-1985) com a União Soviética do mesmo período. Um era cópia carbono do outro! Hoje em dia, as idéias de Marx, finalmente libertas da escravidão ideológica que a antiga USSR lhe impôs, podem ser agora apreciadas de melhor forma. Mencionamos estes fatos porque parece evidente, que estes tipos de desvios são comuns em todas as civilizações.
Todavia, o que nos impressiona é que a corrupção que afeta a cristandade é sempre, de forma constante, maior e mais abrangente, o que a torna ainda mais incompreensível. Sem dúvida as práticas da cristandade têm sido, sistematicamente, o exato oposto daquilo que a verdade como revelada em Jesus representa. Mas como isto é possível? Se Jesus prometeu “E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século (Mateus 28:20); e também prometeu que não nos deixaria órfãos pois “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco (João 14:16)”. E mais, quando sabemos que “Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre (Hebreus 13:8)” não podemos evitar a pergunta: Como é possível que os ensinamentos do Senhor tenham sido completamente mudados de forma tão perversa, de maneira tão rápida e completa? Os defensores da Teologia Católica da Libertação entendem exatamente o que estamos dizendo. Por este motivo seus livros estão repletos de idéias de que agora Deus não fala mais através da igreja (católica). Agora Deus se identifica com suas criaturas que se expressam através de revoluções, de guerras de libertação que defendem a causa dos pobres e lutam por justiça social. Mas tudo isto não passa de teologia natural, que é a eterna mania de discernirmos a revelação de Deus naquilo que os seres humanos estão fazendo. Temos que resistir a tais conceitos pois os mesmos são antibíblicos como de resto tudo o que representa a cristandade.
E DAÍ?
Que diremos então? Deus fracassou? O que você acha caro leitor? Na realidade não. São assuntos distintos. O fato de que a cristandade avacalhou com a revelação bíblica não muda em nada o que Deus fez. Karl Barth expressou esta verdade com clareza ao dizer: ”O brilho da sabedoria do mundo não fará parar a marcha das coisas, nem impedirá a manifestação da ira de Deus, pois o não reconhecimento de Deus, como Deus, não significa somente erro intrínseco, ou teórico, mas atitude fundamentalmente errada com relação à vida.(13)” Os atos de Deus são soberanos e como disse o apóstolo Paulo “não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Romanos 9:16).
Jesus veio a este mundo e ele é o Filho Unigênito de Deus. Porque Jesus morreu pelos nossos pecados nós somos perdoados completamente. Jesus também ressuscitou e com isto a própria morte foi tragada pela Sua vitória. Independente do que vemos na história, mesmo as piores aberrações da Cristandade não afetam a obra de Deus através de Jesus e nem o justo juízo de Deus sobre a humanidade em geral e a Cristandade em particular. O que Deus fez está feito. A questão verdadeira não é: falhou Deus? É sim o que nós estamos fazendo com aquilo que Deus fez e nos revelou através da sua palavra encarnada (o Senhor Jesus) e escrita (a Bíblia ). O reformador Martinho Lutero compreendeu esta diferença. Como sacerdote Católico Romano ele se via escravizado a toda esta corrupção chamada de Cristandade. Como cristão nascido de novo ele entendia que pela ação do Espírito de Deus ele se encontrava em uma situação de total liberdade, de liberdade de escolha e amplas possibilidades. São suas as palavras: “um cristão é livre e completamente senhor de todas as coisas, não se submetendo a nada”. Seguindo o pensamento de Lutero somos levados a concluir que os chamados cristãos que não se apropriaram da liberdade mencionada, não o fizeram por opção.
Quando pelos séculos afora, pessoas que se chamaram cristãs, optaram por fabricar a Cristandade, sabiam exatamente o que estavam fazendo. Elas escolheram livremente seguir este caminho. Preferiram se esquecer do Senhor e da Sua palavra. Acabaram por optar por uma nova forma de escravidão. Não aproveitaram a liberdade que haviam alcançado. Em vez de se apropriarem de tudo que Deus fez optaram pelo exato oposto. Gálatas 5:1 é uma ilustração viva do que estamos falando! Mais adiante iremos ver um pouco do que Deus fez a nosso favor de maneira imutável.
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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NOTAS
1. O autor chamará de “Cristandade” esta religião falsa, espalhada pelo mundo, que se auto-intitula de cristã. Mesmo não gostando do termo “Cristianismo”, pelo reducionismo ideológico que ele causa, o mesmo será usado para se referir à verdadeira igreja cristã espalhada pelo mundo.
2. Søren Kierkegaard, The Instant, artigo publicado na imprensa Dinamarquesa em 1855.
3. Jaques Ellul, La Subversion du Christianisme, Éditions du Seuil, Paris, 1984.
4. Expressão ouvida pelo autor sendo usada pelo irmão Feliciano Ferreira Campos de São Paulo.
5. Paul-Henri Dietrich, barão d’Holbach enciclopedista (contribui com nada menos do que 376 artigos para a grande enciclopédia publicada por Diderot) e filósofo alemão naturalizado francês nascido em Dezembro de 1723 em Edesheim próximo a Landau e tendo falecido em Paris em 21 de Julho de 1789. Suas duas obras mais significativas com relação à crítica da Cristandade são: 1)”O Sistema da Natureza” publicada em 1770 sob o pseudônimo de J. B. Mirabaud e; 2) “Le Christianisme Dévoilé” de 1761 publicado sob o nome de um amigo já falecido, N. A. Boulanger. Nas duas obras d’Holbach ataca a Cristandade como sendo contrária tanto à natureza quanto à razão. Em tempos mais recentes um inglês chamado M. D. Magee tem publicado um sítio na Internet com o título “Christianity Revealed” o que é uma inegável cópia da obra do barão d’Holbach.
6. Andréas Lwdwig Feuerbach filósofo e humanista alemão que exerceu enorme influência sobre Karl Marx com suas idéias teológicas centradas no homem e não em Deus. Feuerbach abandonou os estudos teológicos e tornou-se discípulo de G. W. F. Hegel durante dois anos em Berlim. Publicou seu primeiro livro acerca da morte e da imortalidade - Gedanken über Tod und Unsterblichkeit em 1832 – de forma anônima. Em 1839 publica “Über Philosophie und Christentum” onde defende a idéia de que a Cristandade já havia desaparecido não somente da razão, mas da própria existência humana e que não passava de uma idéia fixa somente. Sua obra mais importante, todavia, “Das Wesen des Christentums” foi publicada em 1841. Feuerbach, mesmo negando ser ateísta, defendia a idéia de que o “deus” da Cristandade não passava de uma ilusão. Ele exerceu profunda influência sobre o editor anti-cristão David Friedrich Strauss, que escreveu um dos livros mais controvertidos dos quais se tem notícia “Das Leben Jesu Kritisch Bearbeitet” entre 1835-36 bem como sobre Bruno Bauer, outro severo crítico da Cristandade.
7. Nina Smart e Steven Konstatine, Christian Systematic Theology in a World Context, Minneapolis, 1999.
8. Existe ainda muita outra literatura já disponível em inglês, tal como: “The World’s Wisdom: Sacred Texts from the Word’s Religions” publicado por HarperCollinsPublishers ou ainda “The Portable Bible” publicada por Penguin Books que além de conter seleções do Antigo e do Novo Testamentos, traz também porções do Upanishads e do Bhagavad-Gita do Induísmo, do Tao-Te King do Taoísmo, do Gatas do Zoroastrianismo, do Lótus da Lei Verdadeira e da Doutrina Tibetana do Budismo, do Li-Ki e do Livro da Piedade Filial do Confucionismo e do Alcorão do Islamismo.
9. Michael Scott Horton, editor, Religião de Poder, Editora Cultura Cristã, São Paulo, 1988.
10. Juan Árias, Jesus, esse Grande Desconhecido, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.
11. Júlio José Chiavenato, religião da origem à ideologia, FUNPEC-Editora, Ribeirão Preto, 2002.
12. As afirmativas do frei Jacir podem ser encontradas na entrevista que ele concedeu à revista Galileu numero 137 de Dezembro de 2002.
13. Karl Barth, Carta aos Romanos, Novo Século, São Paulo, 2000.
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