O sociólogo Jesse de Sousa em seu livro intitulado A Elite do Atraso — Da Escravidão até à Lava
Jato faz uma ponderação digna de ser repetida. A elite brasileira,
repetindo outras elites ao redor do mundo, deseja perpetuar o esquema criado
com a escravidão e a eliminação sistemática dos pobres. Mas como dissemos isso
não é ideia da elite brasileira apenas. Prova disso é o filme Está é a sua morte, cujo tema central
trabalha a autoeliminação via suicídio de pessoas pobres e que já não têm mais
nenhuma esperança.
O comentário abaixo é da autoria do Prof. Dr. Wilson Roberto
Vieira Ferreira e foi publicado originalmente em seu blog.
Wokesploitation é a
fronteira final do reality show em "Esta é a Sua Morte"
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Depois de explorar as mazelas do
sexo e da vida, a última fronteira da TV é a morte. Mas não a das vítimas, mas
daqueles que querem dar cabo das suas próprias vidas. Depois de décadas de
críticas e sátiras cinematográficas ao gênero televisivo do reality show, “Essa
é a Sua Morte” (2017) evoca a tendência atual do “Wokesploitation” — chamar a
atenção das injustiças da mídia e sociedade por meio da hiper-violência e muito
sangue, como na franquia “Uma Noite de Crime”. Mas é um reality show sobre
suicidas endividados através do viés “camp”, “trash” como fosse uma típica
“soap opera” norte-americana. Um filme que vai além da crítica ao reality show:
mostra a fase terminal da TV, agora obcecada em procurar de forma tautista “a
realidade do real” numa sociedade na qual a morte se tornou mais lucrativa do
que a vida, seja no sistema econômico quanto no político.
O gênero televisivo reality show
já foi desconstruído e virado ao avesso pelo cinema, desde o clássicos
gnósticos Show de Truman e EdTV que suscitavam discussões espirituais e
existenciais.
Porém, o século XXI a tendência
foi a desconstrução a partir do viés chamado “wokesploitation”: despertar a
consciência crítica do espectador para as injustiças da indústria do
entretenimento através da hiper-violência, sangue e tripas — forçar o
espectador a abrir os olhos. Mas, paradoxalmente, oferecendo ao mesmo tempo o
prazer voyeurista que é a essência do reality show.
Esta é a Sua Morte (This is Your
Death, aka The Show, 2017), dirigido pelo vilão “Gus” da série Breaking Bad
Giancarlo Esposito, incorre nesse mesmo paradoxo. Entretanto, a novidade que
Esposito nos entrega é uma wokesploitation num viés camp (estética baseada na
ironia kitsch, no exagero e numa proposital vulgaridade), trash, com uma
linguagem de câmera e performance dos atores como fosse uma grande soap opera –
a telenovela norte-americana. O que é reforçado pela estética da fotografia de
Paul Mitchnik, que passou a maior parte da sua carreira fazendo filmes para TV.
Como um filme camp, o próprio
título do filme guarda uma ironia que talvez somente aqueles que viveram o
suficiente a história da TV vão perceber: o título faz um trocadilho com um dos
primeiros reality shows da primeira idade de ouro da TV, o programa This Is
Your Life (1952-1961) – criado e apresentado por Ralph Edwards, foi o primeiro
programa de TV forjado para criar intimidade com o espectador. Celebridades ou pessoas
comuns (que de alguma forma contribuíram com sua comunidade) eram surpreendidas
no show ao vivo com uma apresentação dos detalhes das suas vidas, contadas por
parentes e amigos.
Esse trocadilho do título, ao lado da linha de
diálogo “eu quero mostrar a realidade do real!” confessada ansiosamente pelo
protagonista a certa altura do filme, mostra que Esta é a Sua Morte vai muito
além da discussão do reality show – Esposito pretende discutir o esgotamento
atual do próprio formato da televisão, pelo menos da TV aberta comandada pelos
níveis de audiência.
A passagem de “This Is Your LIFE”
para “This Is Your DEATH” mostra o final tautista (tautologia + autismo) de uma
mídia que parece devorar a si mesma, tão autocentrada e incapaz de mostrar o
real de forma sincera e honesta que, depois de explorar a vida e o sexo
restaria a última fronteira: a morte – um reality show com pessoas dando cabo
da própria vida ao vivo.
E o sintoma de uma sociedade na
qual a morte se tornou mais lucrativa do que a vida, seja no sistema econômico
quanto no político.
O Filme
Os créditos iniciais do filme são
entrecortados com cenas de um desastre ocorrido no episódio final do reality
show Casei com um Milionário. Restando duas finalistas, o milionário em questão
escolhe uma delas para ser sua esposa. Terminando com a vice-campeã rejeitada
disparando uma arma contra o homem antes de virar a arma para si mesma,
matando-se ao vivo e em rede nacional.
Para o galã apresentador
(propositalmente caricato com seu “gel-hair”) Adam Roger (Josh Duhamel), é o
momento da chamada para o despertar no dia seguinte da tragédia: no programa
“Morning Show EUA”, apresentado com um sorriso de porcelana por James Franco,
Adam desabafa ao vivo as afrontas dos jogos televisivos – colocar um contra o
outro pessoas endividadas e desesperadas
para a emissora ganhar audiência e muito dinheiro.
O que lembra bastante o clássico
de Sidney Lumet Network: Rede de Intrigas (1976) no qual um apresentador de
telejornal ameaça se matar ao vivo gritando “Estou louco como o demônio, e não
aguento mais isso!” – sobre o filme clique aqui:
Depois desse desabafo ao vivo,
Adam se acha acabado para a TV, volta para casa e encontra sua irmã Karina (Sarah
Wayne Callies), uma assistente de enfermagem, dando-lhe os parabéns pela
atitude. Chamado pela executiva Ilana Katz (Famke Janssen) para uma reunião no
dia seguinte com a cúpula da emissora, Adam acredita que será demitido e
carreira na TV terminada.
Mas, para sua surpresa, descobre
que em vez de demitido é apresentado para uma nova produtora chamada Sylvia
(Caitlin Fitzgerald) para desenvolverem um novo reality show no qual pessoas
pobres e com intenções suicidas sejam encorajadas a dar cabo de si mesmas ao
vivo.
Um advogado dá o suporte jurídico
necessário: a rede não poderia ser responsabilizada, desde que provasse que não
estimulou os atos suicidas – apenas disponibilizou os meios, sem disparar o
gatilho.
Inebriado pela sua tomada de
consciência, Adam pretende conciliar sua nova “consciência crítica” com os
propósitos de lucro dos executivos da rede: “não quero fazer um show que afirme
a morte. Quero que as pessoas morram por um propósito maior...”, racionaliza
Adam Roger em sua epifania.
Com o programa “Essa é a Sua
Morte”, Adam vira uma espécie de tele-evangelista da morte, com a missão de
“acordar a nação” mostrando pessoas desesperadas, endividadas ou com doenças
terminais trocando a sua vida por um futuro melhor para seus familiares – em um
jogo mórbido, os telespectadores fazem doações para o suicídio com melhor
performance.
Paralela a essa estória,
acompanhamos as desventuras de Mason Washington (interpretado pelo próprio
Esposito), faxineiro da emissora e vivendo de diversos bicos mal remunerados.
Aos 55 anos, já teve seus melhores dias, mas perdeu o emprego com a crise
econômica. E hoje, endividado, está prestes a perder sua casa para o banco e
não consegue mais sustentar sua família.
Fica óbvio que os destinos de
Mason e do tele-evangelista da morte Adam Roger ocasionalmente se chocarão.
Principalmente porque para Roger, a gincana dos suicídios acaba se
transformando em um fim em si mesmo: obcecado pela audiência para continuar
“despertando” o público para a realidade da nação, Roger vai inevitavelmente
ultrapassar a linha da legalidade.
Tautismo da Neotevê
“Mostrar a realidade do real!”.
Essa exortação angustiada de Adam Roger é o sintoma da fase terminal da TV
atual, a fase da metástase do que o pesquisador francês Lucien Sfez chamava de
“tautismo”: o fechamento operacional de um sistema autocentrado, tautológico e
isolado do mundo exterior – SFEZ, Lucien, Crítica da Comunicação, Loyola, 1994.
Depois da primeira fase áurea
(dos tempos do Esta é a Sua Vida) no qual a TV pretendia ser uma janela aberta
para o mundo, sua hipertrofia midiática fez se converter em “Neotevê” (Umberto
Eco) – uma televisão mais preocupada em falar de si mesma com muita
metalinguagem e making of — ver aqui
Esta é a Sua Morte mostra a atual
fase terminal: após tanta metalinguagem e de apresentar para o público o
artifício por trás de câmeras e apresentadores, tardiamente a TV volta a
lembrar que existe um mundo exterior, no deserto do real. Porém, o tautismo já
está em metástase: a “realidade do real” está condenada a ser convertida pela
realidade aumentada do show e entretenimento televisivos.
Mas por que a realidade aumentada
através da morte? Em uma das linhas de diálogo de Adam Roger ainda consciente (antes
de ser absorvido pela lógica mercadológica do show) dispara: “todos estão
lucrando com a miséria dos outros... As igrejas lucram, os bancos lucram, as
companhias de fast food lucram... jornalistas como você lucram!”.
Sistema tanático
Giancarlo Esposito e a dupla de
roteiristas Noah Pink e Kenny Yakkel estão atentos de que a morte não está
apenas no sensacionalismo televisivo. Há um sistema tanático em funcionamento
na sociedade, no qual a TV é mais uma peça da engrenagem.
Uma sociedade essencialmente
tanática (de Thanato, na mitologia grega a personificação da morte que reinava
no mundo inferior dos mortos) como denunciava o pesquisador alemão Herbert
Marcuse no seu livro clássico Eros e Civilização – uma sociedade dominada pela
pulsão de morte, impulso instintivo que busca a morte e destruição.
Uma sociedade baseada em um modo
de produção essencialmente mortal e negativo: o endividamento produz
continuamente riqueza para o sistema financeiro, o dinheiro (riqueza)
substituído pelo crédito (capacidade de endividamento), morte e violência como
produtos de entretenimento, incitamento da violência urbana para justificar
sistemas policiais repressivos.
Política e Economia pensados na
sua forma mais negativa, mas não em um sentido moral – em sentido de um viés
tanático na sua forma invertida: riqueza é endividamento, para manter a paz são
necessários guerra e terror, prazer é morte, entretenimento é simular a
excitante proximidade da morte, sexo é estupro ritualizado na mídia, e assim
por diante.
Muito das críticas negativas
feitas a Esta é a Sua Morte talvez estejam nessa proposital ausência de foco
narrativo: ao contrário de Show de Truman (uma crítica filosoficamente séria ao
gênero televisivo), Esposito nos mostra uma narrativa ambígua entre o tom da
ironia camp, a estética de soap opera e insights sérios e críticos sobre a TV e
além.
Ao negar aquilo que mostra (é
simultaneamente wokesploitation e crítica a wokesploitation), Esposito nos
coloca na mesma situação do espectador na série Breaking Bad: tudo pode parecer
moralmente negativo (a busca da redenção familiar pelo protagonista por meio do
tráfico de drogas), mas pelo menos nos mostra que a “realidade do real” não é
tão maniqueísta ao ponto de podermos facilmente condenar apenas a mídia, seus
executivos e apresentadores.
Thanato e o Mal estão no próprio
funcionamento aparentemente ético e moralmente aceitável da sociedade inteira.
O artigo original poderá ser
acessado por meio do link abaixo:
O trailer de Esta é a sua morte
poderá ser visto por meio do link abaixo. O mesmo é impróprio para menores e
pessoas fragilizadas por qualquer motivo:
Que Deus tenha misericórdia de
todos nós.
Alexandros Meimaridis
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