OS REFORMADORES E A LEI – VALOR,
SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Alderi Souza de Matos
3. Calvino e a Lei
Quando Calvino fala em “lei”, ele
geralmente dá a esse termo um sentido diferente daquele dado por Lutero. Para
ele, a lei não significa o correlativo do evangelho, mas a revelação de Deus ao
antigo Israel, tanto nos “livros de Moisés” como em todo o Antigo Testamento.
Assim, a relação existente entre lei e evangelho, antes que dialética, torna-se
praticamente contínua. Existem diferenças entre os dois testamentos, mas o seu
conteúdo é essencialmente o mesmo: Jesus Cristo. Isso é de importância
fundamental, pois o conhecimento da vontade de Deus seria inútil sem a graça de
Cristo.
A lei cerimonial tinha em Cristo
o seu conteúdo e fim, pois sem ele todas as cerimônias são vazias. A única
razão pela qual os sacrifícios dos sacerdotes antigos eram aceitáveis a Deus
era a prometida redenção em Jesus Cristo. Em si mesmos, dada a nossa corrupção,
quaisquer sacrifícios que pudéssemos oferecer a Deus seriam inaceitáveis. Mas é
na lei moral que se pode ver mais claramente a continuidade que existe entre o
antigo e o novo. De fato, a lei moral tem um tríplice propósito.
O primeiro propósito da lei – e
aqui Calvino concorda com Lutero – é mostrar-se o nosso pecado, miséria e
depravação (usus theologicus). Rm 3.20; 5.20. Quando vemos na lei o que Deus
requer de nós, ficamos face a face com as nossas próprias deficiências. Isso
não nos capacita a fazer a vontade de Deus, mas nos força a deixar de confiar
em nós mesmos e a buscar o socorro e a graça de Deus (Institutas 2.7.6-9). A
lei é um espelho que mostra aos homens a sua verdadeira aparência aos olhos de
Deus, para que “despidos e vazios eles possam correr para a sua misericórdia,
repousar inteiramente nela, ocultar-se nela e apegar-se somente a ela para
obter a justiça e os méritos disponíveis em Cristo para todos os que anelam e
buscam essa misericórdia com verdadeira fé. Nos preceitos da lei, Deus é
galardoador somente da perfeita justiça, e disso todos nós carecemos. Por outro
lado, ele é o Juiz severo de todos os pecados. Mas, em Cristo, a sua face
brilha plena de graça e suavidade mesmo para com pecadores miseráveis e
indignos” (Institutas 2.7.8).
O segundo propósito da lei é
refrear os ímpios (usus civilis; Institutas 2.7.10-11). 1 Tm 1.9-10. Embora,
isso não leve à regeneração, é todavia necessário para a ordem social. Como
muitas pessoas obedecem à lei movidas pelo temor, as ameaças que ela contém
servem para fortalecer essa função. Sob essa rubrica, a lei também serve
àqueles que, embora predestinados para a salvação, ainda não se converteram. Ao
forçá-los a atentar para a vontade de Deus, ela os prepara para a graça à qual
eles foram predestinados. Assim, muitos que chegaram a conhecer a graça de Deus
testificam que antes da sua conversão sentiram-se compelidos a obedecer a lei
movidos pelo temor.
Finalmente, o terceiro uso da lei
– tertium usus legis – é revelar a vontade de Deus àqueles que crêem (Institutas
2.7.12). Sl 19.7-8; 119.105. Essa é uma ênfase que haveria de tornar-se típica
da tradição reformada e que lhe daria grande parte da sua austeridade em
matéria de ética. O próprio Calvino, com base nesse terceiro uso da lei, dedica
uma extensa seção das Institutas à exposição da lei moral (Livro II, Cap.
VIII). A sua afirmação básica é que Cristo aboliu a maldição da lei, mas não a
sua validade. O erro do antinomianismo está em afirmar que, uma vez que Deus
aboliu em Cristo a maldição da lei, os cristãos não mais estão obrigados pela
lei. Na verdade, a lei não pode ser abolida, pois ela expressa a vontade de
Deus, que nunca muda. O que foi abolido, além da maldição da lei moral, foi a
lei cerimonial. A razão para isso é clara: o propósito das antigas cerimônias
foi apontar para Cristo e isso não é mais necessário um vez que a realidade
plena já foi revelada.
O “terceiro uso da lei” significa
que os cristãos devem estudar a lei de modo cuidadoso, não somente como uma
palavra de condenação que continuamente os impele para a graça de Deus, mas
também como o fundamento para determinarem como devem ser as suas ações. Nesse
estudo e interpretação da lei, três princípios fundamentais devem ser
conservados em mente: (1) Deus é espírito e por isso os seus mandamentos dizem
respeito tanto às ações externas quanto aos sentimentos íntimos do coração.
Isso é verdade quanto a toda a lei e, portanto, o que Cristo faz no Sermão da
Montanha é simplesmente explicitar o que já estava implícito, e não promulgar
uma nova lei. A lei de Cristo não é outra senão a lei de Moisés (Institutas
2.8.6-7). (2) Todo preceito é ao mesmo tempo positivo e negativo, pois toda
proibição implica em uma ordem e vice-versa (Institutas 2.8.8-10). Assim, nada
é deixado de fora da lei de Deus. (3) O fato de que o Decálogo foi escrito em
duas tábuas mostra que a devoção e a justiça devem caminhar de mãos dadas
(Institutas 2.8.11). A primeira tábua trata dos deveres para com Deus; a
segunda diz respeito às relações com o próximo. Assim, o fundamento da justiça
é o serviço a Deus e este é impossível sem um relacionamento justo com as
outras pessoas.
Portanto, existe uma continuidade
fundamental entre o Antigo Testamento e o Novo (Institutas 2.10; 3.17).
Essencialmente, essa continuidade tem a ver com o fato de que a vontade de Deus
revelada no Antigo Testamento permanece eternamente a mesma, com o fato
adicional de que o âmago do Antigo Testamento foi a promessa de Cristo, do qual
o Novo Testamento fala como um fato consumado. Não obstante, existem algumas
diferenças significativas entre os dois testamentos. Essas diferenças são cinco
(Institutas 2.11): (a) O Novo Testamento fala claramente da vida futura, ao
passo que o Antigo somente a promete por meio de sinais terrenos. (b) O Antigo
Testamento apresenta apenas a sombra daquilo que está substancialmente presente
no Novo, a saber, Cristo. (c) O Antigo Testamento foi temporário, enquanto que
o Novo é eterno. (d) A essência do Antigo Testamento é lei e, portanto,
servidão, ao passo que a essência do Novo é o evangelho da liberdade. Cumpre
observar, todavia, que tudo o que é prometido no Antigo Testamento não é lei,
mas evangelho. (e) O Antigo Testamento foi dirigido a um único povo, enquanto
que a mensagem do Novo é universal. Porém, apesar dessas diferenças, a ênfase
básica da reflexão de Calvino sobre lei e evangelho é de continuidade, e a
diferença entre ambos é uma diferença entre promessa e cumprimento. Nisso,
Calvino diferiu substancialmente de Lutero. E foi isso em parte que permitiu ao
calvinismo articular programas éticos mais detalhados do que o fizeram os
luteranos.
4. As Confissões Reformadas e a
Lei
A ênfase de Calvino ao terceiro
uso da lei fez com que os documentos confessionais reformados dessem grande
destaque a esse ensino, especialmente através da exposição detalhada do
Decálogo. Já no Livro II das Institutas, ao tratar da lei (capítulos 6-11),
Calvino faz uma exposição detalhada dos Dez Mandamentos (8.11-50); o mesmo no
seu primeiro catecismo, Instrução na Fé (1537).
A 2ª pergunta e resposta do
Catecismo de Heidelberg (1563) diz o seguinte: “Quantas coisas deves conhecer
para que possas viver e morrer na bem-aventurança desse consolo? Três. Primeiro, a enormidade do meu pecado e
miséria. Segundo, como sou liberto de todos os meus pecados e suas terríveis
conseqüências. Terceiro, que gratidão devo a Deus por tal redenção.” Isso
antecipa as três partes em que se divide o Catecismo: (1) O Pecado e a Culpa do
Homem – A Lei de Deus (pp. 3-11): os dois primeiros usos da lei. (2) A Redenção
e Liberdade do Homem – A Graça de Deus em Jesus Cristo (pp. 12-85): o
evangelho. (3) A Gratidão e Obediência do Homem – A Nova Vida Através do
Espírito Santo (pp. 86-129): a lei moral, especialmente o Decálogo (pp.
92-115).
A Confissão de Fé de Westminster (1643-1646)
dedica um capítulo à “Lei de Deus”, na parte que trata da vida cristã. Esse
capítulo aborda em sete parágrafos os três usos da lei e os seus diferentes
aspectos (cerimonial, civil e moral). Já o Catecismo Maior dá um destaque muito
mais enfático à lei. A sua terceira parte (pp. 91-196) aborda o dever do homem
em relação a Deus. Nessa seção, mais da metade das perguntas tratam da lei e do
Decálogo (pp. 91-148). O mesmo se pode dizer do Breve Catecismo (pp. 39-84, de
um total de 107 perguntas).
5. Antinomismo e Legalismo
Calvino e Lutero foram unânimes
no seu entendimento dos primeiros dois usos da lei (elênctico, de élenchos =
repreensão [ver 2 Tm 3.16], e civil ou político). Todavia, Lutero não ensinou
formalmente um terceiro uso da lei. Os dois reformadores concordaram em suas
noções sobre a graça, a justificação e a liberdade cristã, bem como em sua
oposição contra qualquer forma de justiça pelas obras, por um lado, ou de
antinomianismo, por outro lado. A diferença básica entre Lutero e Calvino no
tocante à lei é que, para Lutero, a lei geralmente representa algo negativo e
hostil; daí o fato de mencioná-la ao lado do pecado, da morte e do diabo.
Calvino via a lei primariamente como uma expressão positiva da vontade de Deus,
por meio da qual Deus restaura a sua imagem na humanidade e a ordem na criação
decaída. Lutero estava consciente do terceiro uso da lei, mas ele não diz que a
lei é principalmente um guia e um incentivo para os fiéis. Ele estava pronto a
dizer, especialmente no início da década de 1520, que o crente de fato não
precisava da lei. Isso explica em parte o fato de que o luteranismo tem tido de
resguardar-se contra tentações antinomianas, ao passo que os círculos
reformados têm revelado maior tendência de cair no legalismo.
Historicamente, tantos os
luteranos como os reformados têm tido dificuldade de manter o correto
equilíbrio entre lei e evangelho, o que tem levado ao antinomismo, de um lado,
e ao legalismo e moralismo, do outro. O antinomismo acentua de tal modo o fato
de o cristão estar livre da condenação da lei a ponto de subestimar a
necessidade da confissão diária dos pecados e da busca sincera da santificação.
Os católicos romanos com efeito acusaram a Reforma de antinomismo ao afirmarem
que a doutrina da justificação pela fé conduziria à frouxidão moral. Já na
década de 1530, Lutero expressou a sua preocupação pelo fato de um dos seus
seguidores, João Agrícola (c. 1494-1566), ter se tornado antinomista. Lutero o
criticou por não acentuar adequadamente a responsabilidade moral dos cristãos.
O perigo maior enfrentado pela
Reforma foi o do moralismo e legalismo. Os moralistas ou neonomistas acentuam
de tal modo a responsabilidade cristã que a obediência torna-se mais que o
fruto ou evidência da fé; antes, ela passa a ser vista como um elemento
constitutivo da fé justificadora. O legalismo inevitavelmente ataca a certeza e
a alegria cristãs e tende a criar uma piedade egocêntrica, excessivamente
introspectiva.
Era Calvino um legalista? Nos
seus escritos, em geral não. Como vimos, ele estabeleceu normas para a
interpretação da lei. Primeiro, a lei visa não somente a probidade externa, mas
a justiça interior e espiritual (Institutas 2.8.6). Segundo, os mandamentos e
proibições sempre implicam mais do que as palavras expressam, isto é, a mera
obediência formal à lei não é suficiente (Institutas 2.8.8). Deve-se buscar a
intenção do legislador; o melhor intérprete da lei é Cristo (Institutas 2.8.7).
Terceiro, a dupla divisão da lei em deveres de piedade e deveres de caridade
mostra que o temor a Deus é o fundamento da justiça (Institutas 2.8.11). Na sua
teologia, a forte insistência de Calvino na justificação somente pela fé
contrasta com o espírito legalista. Além disso, ele recusou-se a fazer da
disciplina uma prova decisiva da existência da Igreja. Outro ponto
significativo é o fato de ele ter colocado a exposição da lei no Livro II das
Institutas (soteriologia), e não no Livro III, como parte da seção sobre o
arrependimento e a vida cristã. Na discussão da vida cristã ele apela mais à
vida e exemplo de Jesus e ao conjunto da teologia cristã como a fonte e o guia
dessa vida.
Por outro lado, as Ordenanças
Eclesiásticas (1541) criaram um consistório para regular a conduta da
comunidade cristã e abriram as portas para o legalismo. Os oficiais de Genebra
não hesitaram em forçar as pessoas a irem à igreja. Eles também investigavam e
regulavam muitos detalhes da vida diária. Calvino tinha um desejo profundo de
que a Igreja abrangesse toda a comunidade. Pelo menos no que diz respeito a Genebra,
ele nunca abandonou o ideal medieval do corpus christianum, mas buscou fazer da
comunidade de Genebra o verdadeiro corpo de Cristo. Porém, essa preocupação em
obter a comunidade ideal pode ter levado o reformador a apelar para métodos
legalísticos.
O desafio que se coloca diante de
nós é duplo: dar um testemunho persuasivo da autoridade pessoal do Deus vivo
sobre cada vida humana, mas ao mesmo tempo não substituir o reino pessoal de
Deus por regras meticulosamente formuladas.
A primeira parte desse artigo
poderá ser lida por meio desse link aqui:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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Desde já agradecemos a todos.
Referências
Justo L. González, A History of
Christian Thought, III:53-55 (Lutero), 78-79 (Zuínglio), 146-49 (Calvino).
T.H.L. Parker, Calvin: An
Introduction to his Thought (Louisville: Westminster/John Knox, 1995).
John H. Leith, John Calvin’s
Doctrine of the Christian Life (Louisville: Westminster/John Knox, 1989),
45-54.
W.R.G, “Law and Gospel”, em S. B.
Ferguson, D.F. Wright e J.I. Packer, eds., New Dictionary of Theology
(InterVarsity, 1988), 379s.
I. John Hesselink, “Law”, em
Donald K. McKim, ed., Encyclopedia of the Reformed Faith (Westminster/John
Knox, 1992), 215-217.
Mauro F. Meister, “Lei e Graça:
Uma Visão Reformada”. Fides Reformata IV:2 (Jul-Dez 1999), 45-58.
Timothy George, Theology of the
Reformers (Nashville: Broadman, 1988). Um livro que aborda várias dessas
questões é A Lei Moral, de Ernest Kevan, da Editora Os Puritanos. Por exemplo,
o cap. 12 trata da importante relação entre a lei e o evangelho.