Esse
material é um estudo dividido em quatro partes. No final de cada parte você
encontrará um link para o estudo seguinte. Não deixe de ler as três partes.
III. Do Pecado
e da Soberania Divina.
Outra questão que precisamos tratar aqui tem a ver com a soberania
de Deus em relação à existência do pecado. A afirmação tantas vezes repetida de
que o homem é a causa secundaria, e Deus é a causa primaria do pecado, não pode
ser sustentada biblicamente de maneira aceitável. O autor tem tido a
oportunidade de ouvir muitos defensores desta idéias, aos quais considera bem
intencionados, mas, profundamente errados, acerca da soberania de Deus. Alguns,
sem perceber, estão ensinando que Deus mesmo é responsável pela origem do
pecado. Entre as “pérolas” ouvidas estão:
·
Deus desejou que o pecado existisse!
·
Deus é a causa primária e o criador do
pecado. Esta afirmação está baseada em uma interpretação equivocada de Isaías
45:7 que diz: “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o
SENHOR, faço todas estas coisas”. Só que a expressão “mal” neste versículo diz
respeito, por força do paralelismo, àquilo que se opõe à paz e não ao “mal” em
termos absolutos.
Estes tipos de afirmativas são feitas, muitas vezes, em contextos
que procuram defender e justificar a soberania de Deus. Independentes disto e
por melhor intencionadas que sejam, tais afirmativas são, em sua essência, blasfêmias. E digo isto
porque é realmente muito complicado pedir perdão pelos pecados àquele que
consideramos como o responsável primeiro ou maior pelos mesmos. A lógica nos
levaria a exigir que Deus é quem deveria nos pedir perdão!
Durante todos estes séculos em que a palavra de Deus tem estado em
existência, cristão equilibrados têm rejeitando tanto a noção de que Deus
“desejou” que o pecado viesse a existir, como a noção de que pecado é fruto de
algum acontecimento fortuito que escapuliu ao controle de Deus. Teólogos que
tratam com a devida reverência a palavra de Deus, através da história do povo
de Deus, tendem a admitir, no máximo, que Deus “permitiu” o pecado. Mas mesmo
esta admissão vem acompanhada dos mais eloqüentes protestos de que: O
indicativo mais claro de que existe um relacionamento da vontade soberana de
Deus com respeito ao pecado não pode ser percebido na ação que levou Adão a
cometer o que chamamos de pecado original e sim, na ação de Deus como
demonstrada na cruz, onde por meio da morte de Seu próprio filho, Deus vence o
pecado e bane a conseqüência mais terrível do pecado que é a morte. Veja como
Isáias expressou esta verdade:
Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas
iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e
pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como
ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos. Ele
foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao
matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a
boca. Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem dela cogitou?
Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido.
Designaram-lhe a sepultura com os
perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça,
nem dolo algum se achou em sua boca. Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua
alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e
prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos. Ele
verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu
conhecimento, justificará a muitos, porque as iniqüidades deles levará sobre si.
Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá
ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foi contado com os
transgressores; contudo, levou sobre
si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu - Isaías 53:5 a 12.
Outras passagens que demonstram com clareza esta verdade são:
·
Portanto, assim como por um só homem
entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a
todos os homens, porque todos pecaram - Romanos 5:12.
·
Porque o salário do pecado é a morte,
mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor -
Romanos 6:23.
·
Aquele que não conheceu pecado, ele o
fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus - 2
Coríntios 5:21.
·
O qual se entregou a si mesmo pelos
nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de
nosso Deus e Pai - Gálatas 1:4.
·
Ora, neste caso, seria necessário que
ele tivesse sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se
cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo
sacrifício de si mesmo, o pecado - Hebreus 9:26.
·
Jesus, porém, tendo oferecido, para
sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus,
aguardando, daí em diante, até que os seus inimigos sejam postos por estrado
dos seus pés.Hebreus 10:12—13.
A história do pensamento cristão bem como cada uma das análises
racionais do pecado, como a análise psicológica do pecado feita pelo filósofo
dinamarquês Søren Kierkegaard[1], de que o pecado pressupõe
a si mesmo, demonstram apenas que todas as tentativas de explicar o pecado,
acabam por reduzir o mesmo a algo que não produz culpa e, por este motivo, não
necessita ser confessado. A Bíblia, ao contrário, é objetiva e direta: o pecado
precisa se reconhecido e confessado e não explicado. A própria Bíblia não
elabora acerca do surgimento do pecado. Nenhuma palavra é dada acerca de como o
pecado surgiu no universo angelical. Por semelhante modo nenhuma palavra nos é
dita acerca de como o pecado chegou ao Planeta Terra. Quando se trata de nossos
primeiros pais a Bíblia também não traz nenhuma palavra acerca de como o ser
humano, criado por Deus, podia pecar. Como dissemos antes o pecado é tanto imoral
quanto irracional. Talvez seja por este motivo que a Bíblia não elabora sobre a
origem do mesmo. O fato é de que não existe nenhuma justificativa lógica para a
prática de atos que sejam qualificados como irracionais. Se existe alguma razão
moral para a prática do pecado, ou alguma razão lógica para justificar a
realidade do pecado, a Bíblia não diz nada a este respeito.
IV. A Queda
e o Pecado como História.
A queda dos seres humanos, todos representados federativamente em
Adão, no pecado, é considerada pela Bíblia como algo fundamentalmente
histórico. Isto faz com que o próprio pecado, cometido pelo homem, seja também
um evento histórico. Assim podemos dizer que uma das características do pecado
é que ele está sempre relacionado com algum evento, tal como, por exemplo, a
queda de nossos primeiros pais. Este é um dos motivos porque o pecado não pode
acontecer dentro das atividades do Deus triuno, já que a tri-unidade opera em
uma dimensão onde o tempo é irrelevante – ver 2 Pedro 3:8. O pecado em si, não
possui uma dimensão de eternidade. Ele está, no nosso caso, restrito ao tempo e
ao espaço. Já a ofensa causada pelo pecado, esta sim tem uma dimensão eterna,
porque ofende, em última instância, ao Deus Eterno – ver Salmos 51:4. Por outro
lado, todas as nossas atividade, inclusive o que pensamos, acontecem dentro da
dimensão do tempo e do espaço. Exatamente por esta restrição, tudo o que
fazemos, inclusive os pecados que cometemos, não são nem necessários nem
eternos. A realidade do pecado está sujeita à sua existência temporal. O pecado
acontece no tempo. No caso da transgressão de Adão, ela aconteceu uma vez,
naquele momento e naquela circunstância histórica.
Voltemos então a falar do relacionamento do pecado com os eventos
registrados nos três primeiros capítulos do Gênesis. Quando lemos os capítulos
iniciais do livro do Gênesis não é difícil perceber que o pecado não é um item
da criação, daquilo que foi criado, nem mesmo uma qualidade desta mesma
criação. Especulações que alegam que o pecado é uma qualidade da criação de
Deus e que será, em algum tempo futuro, transformado em algo bom, não levam em
conta esta realidade que acabamos de mencionar. Pois ao terminar a criação, no
sexto dia, Deus a estampou com as seguintes palavras: “Viu Deus tudo quanto
fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia - Gênesis
1:31”. O pecado, por sua vez, é uma contradição a todas as coisas criadas. No
caso do primeiro pecado cometido, o mesmo demonstrou todo seu potencial, como
um verdadeiro trator, destruidor de todas as coisas boas. A narrativa bíblica
da queda do homem é marcada por um complexo de contradições entre o homem e
Deus, entre o homem e sua mulher e entre o homem e a natureza, que aparecem,
todas, imediatamente após a queda. Isso tudo para não falar das contradições
que o próprio ser passa a sofrer.
A alternativa filosófica que procura substituir a narrativa
bíblica da queda por um sistema evolucionário despreza, de maneira visceral, o
fato de que tudo o que Deus fez era bom. Quando queremos acreditar que o homem
está evoluindo, que está melhorando e se aperfeiçoando com o passar do tempo,
além de negarmos a criação boa de Deus, negamos também aquilo que Deus
conquista, na própria história humana, mediante a vida e a morte vicária de
Jesus Cristo, que é a nossa redenção.
A existência do pecado, com suas conseqüentes misérias e
destruição, tem provocado a reação de inúmeros pensadores, cristãos e não
cristãos, que buscam encontrar uma explicação que possa ser satisfatória, mas
que até o tempo presente, tem se constituído em uma grande frustração.
Juntamente com o tsunami do final de 2005, não pereceram somente centenas de
milhares de pessoas. Naufragaram também inúmeros teólogos e pastores que por
não poderem compreender como uma tragédia daquela dimensão poderia ter
acontecido, acabaram preferindo abandonar a fé, como certeza daquilo que está
revelado, para tornarem-se, por assim dizer, parte da grande maioria das
pessoas que vivem neste planeta e que não têm certeza de nada. A certeza ficou
restrita ao que “eu” posso fazer, já que para estes, Deus é incapaz ou não pode
fazer nada. Precisamos ter muita humildade, como seres humanos frágeis e
finitos, para aceitarmos que tanto a origem do pecado quanto a sua continuidade
na vida de cada ser humano, bem como as devastadoras conseqüências advindas da
prática persistente do mesmo, são, e continuam sendo, um enigma para o qual não
existe defesa, nem teodicéa[2] que o justifique.
V. O Pecado
Original.
Em primeiro lugar devemos deixar bem claro que a expressão “pecado
original” não é uma expressão bíblica.
Trata-se, exclusivamente, de um conceito teológico e, como tal, não lança
nenhuma luz sobre a origem do pecado. Durante os séculos, os teólogos e
pensadores cristãos têm desenvolvido os seguintes aspectos deste conceito
teológico. O pecado original:
·
Não se refere ao primeiro pecado
cometido entre todos os pecados.
·
Também não se refere ao primeiro pecado
cometido na história da humanidade.
·
Refere-se exclusivamente ao primeiro
pecado cometido por Adão e, somente a este primeiro pecado e a nenhum outro
pecado, posteriormente cometido por Adão.
Na seqüência cronológica da história da humanidade, Eva foi a
primeira a transgredir; não obstante, o pecado somente entrou no mundo através
da transgressão posterior de Adão - posterior ao pecado cometido por Eva – ver Romanos
5:12. Adão, provavelmente, por ter sido o primeiro ser humano criado – ver 1
Timóteo 2:13 - detinha poderes federativos sobre todos aqueles que viriam
descender dele. Assim, por ser Adão nosso representante federativo, o pecado
original é o primeiro pecado cometido por Adão, que se tornou por sua vez, a
origem de todos os outros pecados, inclusive os outros pecados cometidos
pelo próprio Adão. E é por causa do poder deste primeiro pecado de Adão, que a
morte passou a todos os homens, mesmo para aqueles que não pecaram a semelhança
de Adão – ver Romanos 5:14. Neste contexto, é da maior importância destacarmos,
mais uma vez que: quando Deus deu o
mandamento para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, Eva ainda
não havia sido criada – ver Gênesis 2:15 – 18.
VI. Pecado
e Depravação Total.
O autor é reformado por convicção. Por este motivo é muitas vezes
chamado para explicar os assim chamados “cinco pontos do calvinismo”. Isto se
deve ao fato de que a maioria avassaladora dos irmãos no Brasil, adotam posições
variadas concernentes à doutrina da salvação. Estas posições variam desde o
pelagianismo, passando pelo semi-pelagianismo até chegar às argumentações
feitas pelo teólogo holandês James Arminius e que recebem, por este motivo, o
nome de “arminianismo”. Um dos “cinco pontos do calvinismo” que, diga-se de
passagem, não foram desenvolvidos diretamente por Calvino e sim por seus
seguidores, tem a ver com a questão da corrupção moral e espiritual causada
pela transgressão de Adão e que acabou atingindo a todos nós. Esta corrupção
moral e espiritual recebe a designação de “depravação total” na teologia
reformada.
Da mesma maneira que acontece com a expressão “pecado original”, a
expressão “depravação total” também não é bíblica. Mas a leitura da Bíblia nos
ensina que o nível de corrupção alcançado pelos seres humanos é imenso. A
Bíblia usa inúmeros adjetivos para tentar descrever a condição em que se
encontram os seres humanos caídos. Entre estes adjetivos nós podemos citar: desviados, perdidos, fracos, ímpios, extraviados,
inúteis e pecadores; incapazes de fazer o bem, mortos em delitos e pecados,
transgressores, homens naturais incapazes de aceitar e de entender a revelação
de Deus; néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões
e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-se uns aos outros;
infiéis, adúlteros, traidores, assassinos, atrevidos, enfatuados, mais amigos
dos prazeres que amigos de Deus; cheios de toda injustiça, malícia, avareza e
maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo
difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos,
presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos,
sem afeição natural e sem misericórdia. Bem, a lista é longa, mas não é
exaustiva[3]! E tudo isto e muito mais teve início naquela descrição que
encontramos em Gênesis 3. Os adjetivos que mencionamos acima nos dão uma idéia
daquilo que o pecado fez com o ser humano em termos morais e espirituais.
Tentar definir o pecado é algo muito complexo devido a todas as implicações
envolvidas. Mas, mesmo assim, podemos dizer que: o pecado é um ato destrutivo
de auto-afirmação baseado em orgulho, falta de amor, rebeldia, falta de
gratidão, primeiro contra Deus, mas simultaneamente contra o próprio indivíduo
e contra todas as outras formas de realidade criadas.
Por meio daquele ato inicial de pecado, Adão quebrou:
·
Seu relacionamento com Deus.
·
Seu relacionamento com Eva.
·
Seu relacionamento com a natureza.
·
Além de se lançar em um verdadeiro
cipoal de contradições internas.
Destes quatros relacionamentos dependiam, em diferentes graus,
tanto sua vida como seu bem estar.
Mas o pecado de Adão representa algo mais. Ele também se constitui
em uma declaração de auto-suficiência. A impressão que temos é que Adão, na
esperança de tornar-se como Deus, desejava seguir seu caminho sozinho. Seguir
sem a companhia do Deus que o havia formado do pó da terra. Para uma criatura
tão arrogante e auto-suficiente as palavras do criador são mais do que
apropriadas: “tu és pó e ao pó tornarás”.
·
Por meio daquele primeiro pecado de
Adão tudo é alienado:
·
Adão e Eva se escondem um do outro, por
meio da tentativa de costurar roupas para si mesmos.
·
Adão se esconde de Deus.
·
Adão põe a culpa em Deus e em Eva.
·
Eva culpa a serpente.
·
E o próprio ser se torna alienado de si
mesmo - ver Gênesis 3:7—13.
Toda esta alienação, especialmente de si mesmo, produz uma
depravação correspondente, que priva o homem de todas aquelas qualidades morais
e espirituais que constituem seu autêntico “ser”.
O resultado desta depravação é que o homem perde a capacidade de
auto-realização e torna-se, por este motivo, o seu pior inimigo. Nas palavras
do velho professor do Fuller Theological Seminary, James Daane:
O “ser” está completamente depravado, pois não existe nada pior
nem mais destrutivo que ele possa fazer contra Deus, seu semelhantes, seu mundo
e contra si mesmo do que pecar. Desta maneira, a morte e o inferno
não são mais do que conseqüências das exageradas qualidades de culpa do próprio
pecado. O pecado original, e todos os outros pecados subseqüentes meramente
enfatizam esta realidade, de que o homem está completamente alienado de si
mesmo, de Deus, de seus semelhantes e da natureza. E mais, neste estado de alienação
o homem é incapaz de instaurar relações autênticas como existiam originalmente.
O momento histórico que mostra de maneira mais contundente esta alienação, é
quando os seres humanos, na cruz do calvário, matam Aquele em quem toda a
realidade divina e criada subsiste – ver Colossenses 1:15 – 16 e Atos 3:15.
Desta maneira, o pecado original como aquele ato que quebra todos
os relacionamentos criados por Deus, não é meramente moral, intelectual ou
afetivo, mas algo muito mais profundo do que tudo isto. O pecado é
essencialmente relacional. Como Davi disse: “Pequei contra ti, contra ti
somente, e fiz o que é mal perante os teus olhos” - Salmos 51:4. É esta
referência divina que constitui a essência do pecado original e através desta
mesma referência o pecado se torna pecado contra o próprio homem, contra seus
semelhantes e contra a natureza. A natureza do pecado é completamente
destruidora. É o pecado que introduz aquelas realidades que a Bíblia
descreve como sendo “morte” e “ira de Deus” ver - Efésios 2:1 e 5:1 – 12.
Que o pecado torna o homem completamente depravado não pode ser
observado exclusivamente pela história da humanidade. Apesar do fato de que a
história da humanidade está repleta de atos pecaminosos, um reconhecimento
verdadeiro do pecado, como algo distinto de erros humanos, ignorância, tolices
ou fragilidade, não ocorre dentro do campo da observação nem da experiência
humana. Não existe uma estrada que nos conduza da experiência do pecado ao
conhecimento daquilo que o pecado é. A dimensão religiosa do pecado como um
ato primariamente contra Deus, só pode ser percebida pela revelação divina.
O comportamento moral do homem é normalmente melhor do que a depravação total
nos faz esperar. Esta ambigüidade, entre o esperado e o real, é fruto da ação
permanente e graciosa de Deus sobre a humanidade caída, e isto constitui outra
verdade que só pode ser reconhecida mediante revelação. Que cada e todo pecado
cometido contra o próximo, contra o meio ambiente, é também um pecado contra
Deus só pode ser entendido desta maneira se for revelado por Deus. Da
mesma maneira, é somente mediante a revelação divina que podemos saber que a
única forma de reconstruir, de maneira correta, os relacionamentos com Deus,
com o próximo e com o meio ambiente é mediante a graça da regeneração oferecida
por Deus em Cristo[4].
VII – O
Pecado Humano e a Graça de Deus.
De acordo com 1 João 3:4 “pecado é a transgressão da Lei”. E para
que servia a Lei de Deus senão para, como um aio, nos “conduzir a Cristo, a fim
de que fôssemos justificados por fé - Gálatas 3:24”. Por este motivo, o pecado
além de ser uma transgressão da Lei é também um ato constante contra a bondade
e a graça de Deus. Como tal, o pecado assume uma dimensão que vai muito além do
indivíduo. Ele se torna em algo social e coletivo.
A graça de Deus é uma manifestação do desejo que o criador possui
de manter comunhão com o ser humano. A primeira pergunta do catecismo de
Westminster em seu original inglês é:
Q. What is the chief end of man? – Qual é o propósito supremo do homem?
E a resposta é:
A. Man’s chief end is to glorify God,
and to enjoy him forever. – O propósito supremo do homem é glorificar a Deus e
desfrutá-Lo para sempre.
Por este motivo o maior de todos os mandamentos é: Amarás, pois, o
SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua
força - Deuteronômio 6:5.
Mas Deus não fez o homem para que ele ficasse sozinho, pois a
providência divina diz: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma
auxiliadora que lhe seja idônea – ver Gênesis 2:18. Além disso, Deus ordenou ao
primeiro casal o seguinte: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra –
ver Gênesis 1:28.
E por estes motivos é que o segundo grande mandamento, semelhante
ao primeiro citado acima é: “amarás o teu próximo como a ti mesmo – ver
Levítico 19:18.
Estes dois mandamentos nos ensinam acerca da dimensão do aspecto
social da graça de Deus. Só podemos verdadeiramente amar a Deus, quando amamos
nosso próximo – ver 1 João 4:7 – 8.
O pecado de Adão, como um ato de rebelião e auto-suficiência
contra a graça de Deus destrói, inclusive, o desejo gracioso de Deus de que os
homens vivam em comunidade. Nesta capacidade o pecado assume uma identidade que
é, em sua natureza, completamente anti-social. O pecado assume também uma
dimensão que vai muito além do indivíduo, pois pode ser cometido coletivamente,
por grupos sociais e o que é pior, pode se personificar nas estruturas sociais.
Um país pode e geralmente peca tanto quanto o indivíduo. Existem pecados
nacionais e países inteiros são chamados ao arrependimento e mudança de vida
nas páginas da Bíblia como encontramos, por exemplo, no livro de Jonas, onde
Deus envia o profeta para anunciar um desastre – ver Jonas 3:4 - mas em função
do arrependimento dos Ninivitas, Deus decide não levar adiante a destruição
anunciada. De maneira semelhante a igreja pode pecar e ser ordenada a se
arrepender e mudar de atitude, mas temos que admitir que muito raramente as
igrejas fazem aquilo que exigem de seus membros. Existe muito abuso espiritual
cometido pelas lideranças da igreja chamadas cristãs[5].
O caráter comunitário ou coletivo do pecado deve nos ajudar a
entender os aspectos comunitários ou coletivos da graça de Deus. Deve também
nos ajudar a entender que a justiça, tão reclamada pelos profetas do Antigo
Testamento e também pelo Senhor Jesus e seus apóstolos no Novo Testamento, não
é um conceito individual e sim coletivo. A Bíblia chama de injustiça todos os
assaltos do homem pecaminoso contra o seu semelhante. Estes assaltos possuem
muitas e variadas formas. Quando o autor estadunidense Walter Wink visitou a
América Latina, passando pela Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Nicarágua e
Peru, fez o seguinte comentário: “os males que encontramos eram tão
monolíticos, tão massivamente apoiados pelo nosso governo estadunidense e, em
alguns casos, tão firmemente ancorados numa longa história de tirania, que
tivemos a impressão de que não havia a menor chance de que qualquer coisa
poderia ser feita para mudar a situação”[6].
Nossas doutrinas cristãs, especialmente estas que estamos
praticando nestes últimos 200 anos, têm insistido em uma mudança de paradigma.
A própria comunidade cristã deixou de ser importante para se concentrar no
indivíduo. Começando com a ênfase na salvação do indivíduo durante o século XIX
e, culminando com o estrelismo de pregadores e cantores dos tempos presentes,
tudo tem contribuído para dissolver a comunidade e entronizar o indivíduo como
o objeto especial da graça de Deus. Mas a graça de Deus não existe para o indivíduo.
Ela existe para a comunidade. O exemplo que o autor gostaria de sugerir para
ilustrar este ponto é a oração. O que poderia ser mais individual do que a
oração? Afinal, o próprio Senhor Jesus recomendou que o indivíduo, se
recolhesse ao seu quarto e fizesse suas orações. Mas o ensino de Jesus não
tinha tanto a ver com orações individuais como com orações modestas, sem pompa
e sem falsas aparências. Quando o Senhor ensinou seus discípulos a orar, ele
disse: note os conceitos de comunidade embutidos na oração:
·
Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja
o teu nome;
·
venha o teu reino; faça-se a tua
vontade, assim na terra como no céu;
·
o pão nosso de cada dia dá-nos hoje;
·
e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores;
·
e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal pois teu é
o reino, o poder e a glória para sempre. Amém!
A mesma verdade foi expressa em outra passagem do sermão do monte
em Mateus 5:23 – 24 onde lemos:
·
Se, pois, ao trazeres ao altar a tua
oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta,
vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua
oferta.
Nós só podemos orar a Deus como Pai, pedir pelo pão diário, pedir
perdão por nossos pecados e livramento do maligno se usarmos pronomes plurais
como vós e nós. Só podemos trazer nossas ofertas a Deus se estivermos em paz
com nosso próximo. Só podemos adorar a Deus se fizermos justiça ao nosso
próximo. É bobagem pensar que Deus vai nos aceitar quando temos ciência de que
ofendemos alguém. Este é o maior motivo porque nossas orações não são ouvidas e
nem nossa adoração é aceita por Deus. É nossa responsabilidade buscarmos viver
em paz com todas as pessoas – ver Romanos 12:18.
A distinção ética tão comum em nossos dias entre o individual e o
social está realmente arraigada em uma compreensão equivocada acerca do pecado.
O autor entende e aceita que todo pecado, seja ele cometido por um indivíduo ou
por uma coletividade, seja uma nação ou uma igreja, é de fato pessoal. Nesta
mesma linha podemos dizer que todas as práticas de amor e de fazer aquilo que é
certo, também podem ser definidas como sendo algo pessoal. Note que estou me
referindo a atos em si e não a conceitos teóricos. Biblicamente falando, não
existe nada que possamos chamar de ética pessoal individual, uma ética que diz
respeito ou é peculiar a uma só pessoa, da mesma maneira que não existe graça
de Deus individual nem justiça individual. Este é o motivo principal porque
Jesus trombou frontalmente com os fariseus e outros grupos que existiam nos
Seus dias. Os fariseus eram e, continuam sendo, através dos seus imitadores
modernos, aqueles que acreditavam que podiam e seriam salvos individualmente e
por seus próprios méritos. Para eles não havia salvação coletiva para o povo de
Israel. O indivíduo tinha que salvar-se a si mesmo. Não admira que Jesus os
tenha confrontado com palavras tão duras vez após vez. Nos nossos dias estamos
fazendo exatamente as mesmas coisas que os fariseus fizeram quando assumimos
uma compreensão legalista da Lei de Deus, sem fazer uma referência ao caráter
social da graça de Deus. Quando agimos assim, acabamos por destruir por
completo as idéias Bíblicas de graça, amor e justiça, bem como os ensinos
Bíblicos de que o pecado original de Adão é o pecado de todas as pessoas e o
ato de justiça praticado por Jesus pode se transformar em um ato de justiça de
todas as pessoas. Quão absurdamente longe dos verdadeiros ensinamentos das
Escrituras Sagradas o pecado pode nos levar, creio que ainda estamos por
descobrir.
A Quarta Parte desse estudo poderá ser alcançada através desse
link:
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2012/03/o-pecado-queda-e-graca-de-deus-parte-4.html
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
PS. Pedimos a todos os nossos
leitores que puderem que “curtam” nossa página no facebook através do seguinte
link:
Desde já agradecemos a todos.
NOTAS
[1] O autor está consciente de que
em tempos recentes, inúmeros autores têm revisitado os escritos de Søren
Kierkegaard e que este trabalho tem resultado em uma avaliação mais positiva de
seus escritos. Para aqueles interessados em conhecer melhor a obra de
Kierkegaard, pelo menos em forma de introdução, o autor sugere as seguintes
obras: 1) Paixão pelo Paradoxo – uma introdução à Kierkegaard, de Ricardo
Quadros Gouvêa e 2) Provocations – Spiritual Writings of Kierkegaard –
compilados e editados por Charles E. Moore e publicado pela Bruderhof Foundation
Inc em 2002.
[2] Termo cunhado pelo filósofo alemão Gottfried
Wilhelm Leibniz - 1646 – 1716 a.D., para designar a doutrina que procura
conciliar a bondade e onipotência divinas com a existência do mal no mundo.
[3] Listas contendo as coisas
terríveis que os seres humanos são capazes de fazer podem ser encontradas, por
exemplo, em: Marcos 7:21 – 22; Romanos 1:28 – 32; 1 Coríntios 6:9 – 10; Gálatas
5:19 – 21; Efésios 4:31; 5:3 – 6; Colossenses 3:5; e 2 Timóteo 3:1 – 6. E isto
para ficarmos no Novo Testamento somente.
[4] Daane, James. “Total Depravity” in The Zondervan Pictorial
Encyclopaedia of The Bible. Zondervan Publishing House, Grand Rapids, 1978.
Na citação constam referências bíblicas supridas pelo autor.
[5] Para um tratamento completo da manifestação do
pecado na instituições, sejam sociais, políticas, militares, econômicas e etc,
o autor recomenda a leitura da trilogia escrita por Walter Wink e publicada
pela Fortress Press da Philadelphia entre 1984 e 1992. Os três volumes são: 1.
Naming the Powers; 2. Unmasking the Powers e; 3. Engaging the Powers.
[6] Wink, Walter. Naming the Powers. Fortress Press, Philadelphia, 1984.
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