sexta-feira, 19 de agosto de 2016

POKÉMON GO: O QUE ESTÁ POR TRÁS DESSA NOVA MANIA



O artigo abaixo é de autoria do professor Wilson Roberto Vieira Ferreira e trata dessa nova e contagiante febre chamada de “Pokémon GO”.


Pokémon GO: bem vindo ao deserto do real!

O filme “Matrix” e o conto “Sobre o Rigor da Ciência” do argentino Jorge Luís Borges ajudam bastante a entender a atual febre em torno do jogo Pokémon GO. Não a compreender o jogo em si (de forma positiva ajuda a nos familiarizar com o ambiente urbano e nos tira do sedentarismo, a velha crítica contra os tradicionais games de computadores e consoles), mas a elucidar para qual futuro ele aponta. Realidade aumentada é a união da representação com a tecnologia, do mapa com o território, do virtual com o real. Mas se no conto de Borges pedaços do mapa ficaram grudados ao real, no mundo Matrix é o real que vira um deserto e se agarra na virtualidade. Por enquanto programas como Pokémon GO são metafóricos, anedóticos e, por isso, divertidos. Mas a tecnologia da realidade aumentada vai muito além do que ajudar a compreensão da realidade: pode desertificá-la. 

Já sei o que muitos leitores devem estar pensando: mais um intelectual querendo falar mal do Pokémon GO! Pelo menos prometo fazer uma análise imparcial desse game.

Não há como negar que o game é uma resposta a tantas críticas sobre a alienação dos jogos por computadores – isolamento, sedentarismo dos corpos estáticos com olhos grudados e as mão nervosas em um console, gente esquecendo das próprias necessidades fisiológicas como fome e sede, afundado em uma cadeira de uma Lan House etc.

Pelo contrário, agora as pessoas caminham pela cidade com cenas comoventes de pais jogando com seus filhos em parques, a dopamina à toda alimentando a caça aos Pokémon, a aleatoriedade ambiental que o jogo impõe aos jogadores, incentivando-os a explorar os arredores, sair pelas ruas etc.

Conheci o Pokémon GO através do meu filho mais velho. Acompanhando-o no jogo para entender a mecânica percebi que possui muitas nuances como Pokégyms, Pokébolas, Pokéstops... Aliás, um desses Pokéstops faria a alegria de teóricos da conspiração.

Esses pontos (para onde o jogador deve se dirigir para obter mais Pokébolas, ovos, incensos etc.) localizam-se em praças públicas e endereços culturais da cidade. Um deles ficava em frente a uma grande Estrela de David estilizada de uma marmoraria que fornece o material para um cemitério israelita em São Paulo – já imaginei paranoicos vendo mais uma conspiração judaico-iluminati da Nova Ordem Mundial...


Pokémons, mapas e desertos

Pokémon GO é um game que permite aos jogadores capturar uma variedade de criaturas digitais que se sobrepõem caprichosamente sobre paisagens reais familiares capturadas por uma câmera de smartphone. Locais do mundo real, vistos através da tela, tornam-se o habitat dessas criaturas.

É um jogo que explora a tecnologia de realidade aumentada – técnica para unir o mundo real com o virtual, inserindo objetos virtuais no mundo físico em tempo real usando a interface para manipular objetos reais e virtuais. Filosoficamente, a realidade aumentada é uma confluência entre representação e tecnologia.

Olhando a interface do jogo, mostrando um mapa dos arredores a partir da localização do usuário, fez-me imediatamente lembrar dum conto do escritor surrealista Jorge Luís Borges chamado Sobre o Rigor da Ciência que farei um breve resumo.

Era uma vez um reino obcecado por cartografia, cujos cidadãos queriam fazer um mapa perfeito do seu território. Insatisfeitos com a exatidão de suas tentativas, passaram a criar mapas atrás de mapas em escalas cada vez maiores e com detalhes mais exatos.

Finalmente, chegaram ao mapa perfeito em uma escala 1:1 – era tão minucioso que replicava a própria paisagem. Ficou do tamanho do império, como um cobertor que cobria toda a terra.

Logo os cartógrafos perceberam quão inútil era esse mapa e o abandonaram nos desertos ocidentais do reino. Ainda seria possível ver antigos pedaços desse mapa agarrando-se à realidade.


O mapa não é o território

Qual a lição que podemos tirar desse conto? De que a representação (o “signo”) nunca será a própria coisa. A representação é uma tecnologia que signaliza a realidade. Por isso, sempre houve uma desconfiança dos avanços tecnológicos pela ambivalência dos símbolos, imagens e toda uma gama de formas de representar a realidade: podem ser mentiras, simulações, dissimulações, simulacros ou idolatria – como bem nos mostrou a exploração política das imagens pela Igreja Católica desde o Barroco.

A palavra é a tecnologia de representação mais antiga – exige uma colaboração entre leitor e escritor para criar uma ficção da realidade. Ler a palavra (técnica) e imaginar o objeto representado – aquilo que chamamos de imaginário.

Já na antiguidade clássica Platão olhava com desconfiança atores, artistas e poetas de pretenderem fazer um fac-símile da realidade. Em A República Platão acusava-os de fazerem uma mera imitação da realidade, no mesmo estilo sugerido por Jorge Luís Borges e seus mapas.

Desde Platão, séculos se passaram e percebe-se que o avanço da tecnologia vai na direção de borrar as fronteiras entre a técnica (a representação) e o real, ou entre real e imaginário. O mapa não é o território, o virtual não é o real. Porém, cada desenvolvimento tecnológico faz com que seja mais difícil estabelecer essas distinções.

Aliás, um dos sintomas clínicos da esquizofrenia é tomar a representação como a própria coisa. Algo como entrar em um restaurante, pedir o cardápio e comê-lo achando que a foto do filé a parmegiana seja o próprio prato servido.

Se nas imagens tecnológicas clássicas como a fotografia e o cinema esse emaranhado representação/realidade já estava presente (como nas lendas de que a fotografia roubava nossa alma ou no susto da audiência com as imagens de um trem em movimento no primeiro cinema), agora com o ao vivo, on line, tempo real e tecnologias imersivas como 3D, 4D, realidade virtual e realidade aumentada as fronteiras tendem a desaparecer na percepção.


Realidade aumentada e hiper-realidade

Em si não há nada de perturbador sobre o Pokémon GO – a não ser as denúncias de coleta ilegal de dados pessoais e de que o Niantic Labs (desenvolvedor do game) é gerenciado  por John Hanke, homem responsável pelo maior escândalo de privacidade na Internet nos seus tempos de Google: os carros de rastreamento do Google Street View copiou secretamente tráficos de internet de redes domésticas, coletando senhas, e-mails, informações financeiras etc., segundo The Intercept – ver aqui:


Em termos de tecnologia, o jogo apenas arranha a superfície das possibilidades futuras da realidade aumentada. Essa talvez seja o principal ponto para ser discutido: assim como foi o velho ICQ nos anos 1990, que preparou toda uma nova geração para o uso massivo de programas de comunicação instantâneas no trabalho e lazer no século XXI.

A realidade aumentada promete ir muito além do rigor cartográfico daquele reino descrito por Jorge Luís Borges. Está muito mais próximo da metáfora do filme Matrix: o mapa superando o próprio território – se, como dizem as neurociências, a experiência da realidade nada mais é do que uma configuração de reações químicas e disparos de neurônios no cérebro, as imagens deixarão de ser apenas representações ou cartografias do território.

Superarão a realidade de tal forma que teremos apenas os farrapos do mundo real se agarrando ao mapa.

Como exemplifica o curta Hyper-Reality de Keiich Matsuda (analisado pelo Cinegnose, ver aqui:


onde o protagonista caminha pelas ruas de Medelin, Colombia, com um Google Glass no qual a cidade é coberta  por camadas e camadas de dados, interfaces, menus de opções, animações, pop ups, etc.

A realidade aumentada do data-glass amplifica ou hiper-realiza o real (as ruas e edifícios ficam melhores, mais coloridos, as pessoas mais interessantes, tudo fica divertido e interativo), enquanto lá fora, do outro lado das camadas de dados, está o deserto do real.

Vivemos uma época na qual a tecnologia tem produzido representações cada vez mais divorciadas da realidade.

Pokémon GO faz o jogador despender um esforço real e tempo para capturar os animaizinhos digitais. Faz até nos tornar mais familiarizados com os nossos ambientes urbanos, mas apenas dentro do contexto de interação do jogo.

Em toda a História, as representações da realidade nos tocaram, fizeram a gente pensar e enobreceu a espécie através das artes e das comunicações. Porém, Pokémon GO é um exemplar ainda muito incipiente (e, por isso, divertido) da futura desertificação do real – o momento em que as representações tornam-se apresentações, isto é, suplantam a própria realidade.

Por enquanto, programas como Pokémon GO são apenas metafóricos e anedóticos. Sua tecnologia não tende a melhorar a compreensão da realidade, mas desertificá-la.

O artigo original poderá ser visto por meio desse link aqui:


Que Deus abençoe a todos.

Alexandros Meimaridis

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