CONTINUAÇÃO... PARTE 004
53:4—6: A morte vigária
do Servo
Os v.3—6 descrevem a morte
substitutiva do Servo. O texto apresenta a primeira pessoa do plural (“nós”). É
a comunidade que fala, como em 53:1—3. O Servo foi castigado no lugar das
pessoas dessa comunidade.
4 Certamente, ele
carregou os nossos sofrimentos37
e as nossas dores ele38 levou;
e o reputávamos como
machucado, ferido por Deus e oprimido.
5 Mas ele foi
traspassado39 pelas nossas
transgressões
e moído pelas nossas
iniquidades;
o castigo que nos traz
a paz estava sobre ele,40
e suas feridas foram
cura para nós.41
6 Todos nós, como
ovelhas, andávamos desgarrados;
cada um se desviava
pelo seu caminho,
mas o Senhor fez cair
sobre ele a iniquidade de todos nós.
No v.4, a linguagem das duas
primeiras frases aproxima-se da segunda frase do v.3 (“homem de dores e que
conhece o sofrimento”). Novamente o profeta emprega os termos mak’obot “dores”
e holi “sofrimento”, “doença”. Como já foi observado na análise do v.3, o termo
holi não somente refere-se aos males físicos relacionados à doença, mas abrange
todo tipo de sofrimento humano. mak’obot “dores” inclui sofrimentos físicos e
mentais. Portanto, o Servo não sofre de alguma doença infectocontagiosa. O
texto simplesmente realça sua dor e o seu sofrimento, tanto no âmbito emocional
como no físico. A análise dos verbos
utilizados aqui revela que a morte do Servo seria vigária. O verbo nasa’ “carregar” (“levantar”,
“erguer”, “tomar”) apresenta o sentido da morte substitutiva do Servo. O mesmo
verbo é empregado em Levítico16:22 em referência ao bode vivo, que, no “dia da
expiação” (yom kippur), carregava sobre si as “iniquidades” de Israel, e as levava
para o deserto: “aquele bode levará (nasa’) sobre si todas as iniquidades deles
para terra solitária”. O verbo sabal
“carregar” apresenta o sentido de “carregar uma carga”, “arrastar-se”. No caso,
era o ‘fardo’ do sofrimento da comunidade que pesava sobre o Servo. Ele “tomou
sobre si” e “levou sobre si”; “consequentemente, carregou-o vicariamente como
alguém que toma um fardo pesado do ombro de outrem e o carrega para aquela
pessoa”.42
A última frase do v.4 continua a
descrever o sofrimento do Servo. Ele é considerado pela comunidade como
“machucado”, tradução de naga‘qal particípio “tocar”, “alcançar”, “bater”. A
expressão seguinte o descreve como “ferido por Deus e oprimido”. O primeiro
verbo, nakah hofal particípio “ser ferido”, “ser golpeado”, apresenta “Deus”
como sujeito da ação. O segundo verbo, ‘anah poal particípio, pode ser
traduzido como “ser oprimido”, “ser afligido”, “ser humilhado”, e, à semelhança
do verbo anterior, a ação apresentada por ele é praticada por “Deus”. Quer
dizer, não são homens que levam o Servo ao sofrimento, mas o próprio Deus. O
plano não é humano; é divino.
Se no v.4 o Servo carrega sobre
Si o sofrimento da comunidade, o v.5 explicitará que sua morte substitutiva não
ocorre somente para suportar as dores do seu povo, mas, principalmente, para
proporcionar o perdão dos pecados para ele. No TM/Texto Massorético, a forma
verbal meholal “foi transpassado” é o poal particípio de halal “profanar”.
Segundo a BHS, provavelmente trata-se de mehullal “profanado”, corroborado por
Aquila e pelo Targum. No poal, grau em que se encontra o verbo hebraico, o
sentido é de “ser ferido” (Strong’s Hebrew), e a raiz halal alude ao perfurar
do corpo com um instrumento afiado — Isaías 51:9; Salmos 109:22).43 Trata-se, pois, de uma morte violenta — Isaías
22:2; 66:16 —, resultante de uma perfuração. É impossível não identificar aqui
aquilo que é descrito por
Mateus 27:35
Depois de o
crucificarem, repartiram entre si as suas vestes, tirando a sorte.
O verbo grego utilizado por
Mateus para “crucificar” é stauroo, que significa “fixar” ou “fincar com
estacas”. A palavra “cruz” literalmente significa “estaca”, porque
originalmente, no antigo Israel, era uma estaca usada em fortificações, e
depois passou a ser usada como instrumento de tortura e morte. Num período
posterior, possivelmente na época dos romanos, adicionou-se uma travessa
horizontal (patibulum), na qual a pessoa era amarrada ou cravada. Notadamente o
texto isaiano já antevia a crucificação do Messias, exatamente nos termos em
que é descrita no NT.
Na sequência, o verbo “moído” é a
tradução do hebraico dakah pual particípio “ser esmagada”, “ser despedaçado”. A
razão de tamanha violência são as “iniquidades” da comunidade. O hebraico ‘awon
“iniquidade” apresenta o sentido de “perversidade”, “depravação”. Já o termo
pesha’ “transgressão”, na primeira frase do v.5, enfatiza a rebelião contra a
autoridade de Deus.44
Os termos “transpassado” e
“moído”, juntos, descrevem a terrível violência de Deus contra o Seu Servo.
Afinal, é assim que Deus trata o pecado: com morte violenta. Nota-se aqui a
seriedade da rebelião contra Deus. Não há outro jeito de lidar com o pecado,
senão através da morte que é o salário do pecado. Assim, a morte violenta do
Servo sinaliza a seriedade do pecado.
É importante também notar que os
antigos israelitas acreditavam que todo sofrimento é resultado do pecado (veja
a história de Jó; também João 9:2). Segundo esse ponto de vista, muitos achavam
que o Servo estava sendo castigado por Deus por causa de algum pecado por ele
cometido, quando, na verdade, estava sofrendo por causa das nossas
transgressões.45
O final do v.5 ressalta que a
morte do Servo trouxe “paz” para a comunidade: musar xelomenu ‘alayw “o castigo
que nos traz a paz estava sobre ele”, literalmente “o castigo da nossa paz”. No
hebraico trata-se de um genitivo que indica propósito: a punição sobre o Servo
apresenta o propósito de trazer a “nossa paz”, implicando que a paz com Deus
foi obtida mediante a morte do Servo que sofreu a justa punição requerida pelo
próprio Deus.46 O termo musar
“castigo” evoca a “disciplina” de um pai aplicada ao filho —
Jó 5:17
Bem-aventurado é o
homem a quem Deus disciplina; não desprezes, pois, a disciplina do
Todo-Poderoso.
Provérbios 22:15
A estultícia está
ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela.
Provérbios 23:13
Não retires da criança
a disciplina, pois, se a fustigares com a vara, não morrerá.
A “paz”, xalom, é o bem-estar
resultante de relações pessoais equilibradas e saudáveis. Quando o filho se
rebela, o pai é ofendido, e o xalom/”bem-estar” é rompido; somente o
“castigo/disciplina” pode satisfazer a justiça e restabelecer o xalom.47 Assim também, Deus não poderia se relacionar
com o homem, até que sua justiça fosse satisfeita. Foi justamente a obra de
Cristo que tornou possível a paz entre Deus e o homem —
Romanos 5:1
Justificados, pois,
mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.
A última frase do v.5 afirma que
“suas feridas foram cura para nós”. O verbo rapa’ “curar” não se refere somente
à cura física. Isaltino Gomes afirma que, em Isaías 6:10, o verbo está
relacionado com a conversão, e em 1 Pedro 2:24 “este texto é aplicado à obra de
Jesus e a questão de ser sarado está ligado a ser salvo... ‘Sarar’ ou ‘curar’ é
mais amplo que não ter doenças. É ter a maior de todas as curas, a saúde de
relacionar-se bem com Deus.”48
Em Isaías 19:22, o mesmo verbo também está relacionado com a conversão.
Portanto, é possível afirmar que rapa’ alude tanto à cura física quanto à
espiritual, indicando a restauração holística do ser humano, que, aliás, é um
conceito soteriológico muito importante no Antigo Testamento.49
As duas primeiras frases do v.6
ilustram a rebelião do pecado humano. Aqueles que cometem “iniquidade” (hebr.
‘awon) são como ovelhas desgarradas. Na segunda frase, a palavra ledarko pode
ser traduzida como “pelo seu caminho” ou “para o seu caminho”. O termo derek
“caminho” está prefixado com a preposição le, “para”, “em direção a”, e
sufixado com o pronome na terceira pessoa “seu”, “dele’. Ou sentido da frase é:
“cada um queria seguir o seu próprio caminho”. Aqui está o cerne do pecado. É o
egoísmo. É a busca pela realização pessoal elaborada a partir de uma vida que
trilha seus próprios caminhos independentemente da vontade de Deus. É a
rebelião contra Deus em nome da realização de sonhos pessoais.
A última frase do v.6, à
semelhança do v.5, descreve a morte vigária do Servo. Mas há um enfoque
especial nela: “mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós”. A
morte do Servo efetiva a expiação da “iniquidade de todos nós”. A palavra
hebraica kullanu “todos nós” ocorre no início do v.6 e no seu final. É a
primeira e a última palavra do verso. No início, todos se rebelam contra Deus.
No final, todos são perdoados pela morte do Servo. Então, todos pecaram, mas o
perdão alcançado pela morte do Servo está disponível para todos. É preciso
explicar, contudo, que o “todos”, no contexto do quarto Cântico do Servo, são o
conjunto de pessoas que compõem a comunidade de ETERNO.
Nossa análise dos v.4-6
constatou que o “servo” mencionado nesses versos de modo algum pode ser
aplicado a Israel. O povo de Israel e o de Judá sofreram merecidamente os
exílios. Pecaram. Diferente de Israel, o Servo era inocente. O Servo enfrenta o
sofrimento cruel por causa dos pecados dos outros.
CONTINUA...
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O texto original poderá ser
acessado por meio desse link aqui:
Luciano R. Peterlevitz
Bacharel em Teologia (FTBC e
FATEO/UMESP); Mestre e Doutor em Ciências da Religião, na área de Literatura e
Religião no Mundo Bíblico, pela Universidade Metodista de São Paulo.
Coordenador Acadêmico da Faculdade Teológica Batista de Campinas, onde também
leciona Hebraico, Antigo Testamento e Hermenêutica Bíblica nos cursos de
Bacharelado em Teologia e Pós-graduação em Exposição Bíblica.
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
PS.
Pedimos a todos os nossos leitores que puderem que “curtam” nossa página no
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Desde
já agradecemos a todos.
NOTAS
37 holayenu “nossos sofrimentos”.
É mesmo termo do v.3, holi “doença, sofrimento”. Nelson Kirst et. al.,
Dicionário hebraico-português e aramaico-português, p. 69.
38 BHS: A Siríaca, a Vulgata e
aproximadamente 20 manuscritos medievais apresentam o pronome na terceira
pessoa hu’ “ele”.
39 meholal poal partícipio
“transpassado”, de halal “profanar”. BHS: provavelmente mehullal “profanado”,
corroborado por Aquila e pelo Targum.
40 musar xelomenu ‘alayw “o
castigo que nos traz a paz estava sobre ele”, literalmente “o castigo da nossa
paz”; um genitivo de propósito: “castigo designado para nossa paz”. John N.
Oswalt, Comentário do Antigo Testamento: Isaías, p. 468.
41 rapa’ nifal perfeito singular
seguindo pela preposição le (“para) com o pronome da primeira pessoa plural nu
(nós).
42 J. Ridderbos, Isaías,p. 428.
43 Shalom M. Paul, Isaiah 40-66: Translation
and Commentary, Grand Rapids, Eerdmans Publishing, 2012, p. 405 (Eerdmans
Critical Commentary).
44 Gary V. Smith, Isaiah 40-66, p. 451.
45 Isaltino Gomes Coelho Filho,
Isaías, p. 168-169.
46 Gary V. Smith, Isaiah 40-66, p. 451.
47 John N. Oswalt, Comentário do
Antigo Testamento: Isaías, p. 473.
48 Isaltino Gomes Coelho Filho,
Isaías, p. 170.
49 Gary V. Smith, Isaiah 40-66, p. 451.
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