O artigo abaixo é de autoria do
irmão presbiteriano Lucas Freitas e tem a intenção de nos ajudar a refletir o
quanto aprendemos com a Reforma Protestante que completa 499 anos em 31 de
outubro de 2016. Por meio de comparações precisas, Lucas nos mostra o quão
distante dos princípios e ideais da Reforma Protestante se encontram os
chamados evangélicos nessa segunda década do século XXI.
Reforma Protestante e o
movimento evangélico brasileiro
Lucas Freitas
O movimento evangélico
brasileiro, ao menos no discurso, afirma seu vínculo histórico com a Reforma
Protestante do século XVI, contudo, seus desdobramentos práticos em nosso país,
infelizmente, têm estado bem distantes de tal realidade e promovido inúmeros
ensinos distorcidos que desembocam em atitudes equivocadas, que corrompem a
verdade da Escritura, a saúde da igreja e a vida dos que estão e se aproximam
desta de um modo geral.
Foi o saudoso Bispo Robinson
Cavalcanti quem disse:
“Qual o jovem cristão hoje que
pode minimamente discorrer sobre Lutero, Calvino, Melanchton ou Beza? Qual é o
fiel de hoje que conhece os catecismos ou as confissões de fé como as de
Westminster, de Augsburgo ou XXXIV Artigos da Religião? Em relação à Reforma o
nosso protestantismo é como um computador primitivo, não possui memória, apenas
uma vaga lembrança.”
Infelizmente nos dias atuais
promovemos muito mais a experiência, os resultados e os relacionamentos,
enquanto que a fé, a confessionalidade, o ensino robusto e o amor à Escritura
como palavra pela qual Cristo governa Sua igreja são deixados de lado,
rotulados como “chatos e dispensáveis” ou enquadrados dentre as atividades que
“não empolgam ninguém”. Não é difícil presenciar, eu mesmo já o fiz, pessoas
dentro das igrejas evangélicas brasileiras que não têm a menor ideia das suas
origens como cristãos, que ao ouvirem o termo “Reforma” confundem o movimento
do século XVI com uma possível reforma aqui ou ali na construção do templo.
Claro que não estou falando de irmãos novos na fé que ainda carecem de
conhecimento básico, estou falando de moços, moças, homens, mulheres, gente
adulta inteligente, que frequenta igreja por 2, 3, 5, até 10 anos. É claro
também, que não estou generalizando, existe um sem número de igrejas sérias em
nosso país e o movimento de retorno às Escrituras e à ortodoxia tem crescido
consideravelmente, porém, a quantidade de cristãos protestantes brasileiros que
tem pouca ou nenhuma informação a respeito de quem são, de onde vêm suas raízes
e porque recebem o nome de ‘cristãos protestantes’ ainda assim é alarmante.
E você, sabe do que se
trata a Reforma Protestante?
A Reforma Protestante foi o
movimento que lutou contra o clericalismo e o hierarquismo que dominavam a
Igreja Católica Romana no final do século XV, início do século XVI, e, por
conseguinte, grande parte da estrutura social da época, hasteando com toda
força a bandeira da doutrina bíblica do sacerdócio universal dos crentes e da
suprema autoridade das Escrituras Sagradas sobre a vida do cristão. Numa época
onde apenas clérigos, nobre e reis podiam ler e escrever, os reformadores
espalharam escolas e universidades pela Europa balizados na ideia de que todo
ser humano fora criado a imagem e semelhança de Deus e tem o direito a
alfabetização e ao aprendizado, e que toda atividade é santa perante Deus e
pode ser feita de forma excelente para Sua glória. No anseio de formar gente
para servir a Deus e aos homens em todas as áreas da vida, contrapondo em
absoluto a prática católica romana da época, algumas das instituições fundadas
pelos reformadores na área da educação foram as Universidades de Genebra,
Zurique, Utrech, Amsterdã, Harvard, Yale, Princeton, Brown, Dartmouth e
Rutgers. Os Puritanos restauraram Oxford e Cambridge. A Reforma foi muito mais
que um movimento religioso, os reformadores lançaram as bases para uma nova
sociedade, empoderando cristãos a se especializarem nos dons que tinham para
servir a quem quer seja, onde quer que fosse para a glória de Deus. Estavam
abertos os portões para uma grande revolução na história da humanidade.
Michael Horton em seu livro “O
cristão e a cultura” mostra com veemência o quanto nossos pais criam que Deus é
Senhor de toda a nossa vida! Horton descreve esta imensa mudança que o mundo
experimentou com a Reforma Protestante nas figuras de Lutero e Calvino:
Martinho Lutero persuadiu o
governo a proclamar a educação universal compulsória tanto para meninas como
para meninos, pela primeira vez na história ocidental. Com seus associados ele
criou um sistema de educação pública na Alemanha. O cristianismo era religião
da Palavra, e aqueles que dependiam de imagens religiosas e só “ouviram falar”
eram, a princípio espiritualmente empobrecidos. Mas eram também culturalmente
empobrecidos e esse era um ponto igualmente importante. Com esse propósito o
colega de Lutero, Melanchthon, declarou: “A finalidade última que confrontamos
não é apenas a virtude particular, mas o interesse do bem público.”
Calvino argumentava na seguinte
linha: Visto que é necessário preparar as gerações futuras a fim de não deixar
a igreja num deserto para os nossos filhos, é imperativo que se estabeleça um
colégio para se instruir os filhos e prepará-los tanto para o ministério quanto
para o governo civil.” (Ordenanças de 1541)
Os reformadores acreditavam que
todo homem tem direito de ser respeitado, valorizado e ensinado. Não é o fato
se ser Rei, governante, nobre, professor, enfermeiro, gari ou um pastor que
confere maior santidade e um lugar mais importante a alguém junto de Deus,
afinal, é muito possível encontrar um pastor relapso, preguiçoso e desonesto
para com os estudos da Escritura Sagrada e suas atividades pastorais, que traz
desonra e vergonha para Deus, e, uma dona de casa caprichosa e amorosa que faz
seu trabalho com afinco e orgulho, que traz glória para Deus. Não é o que
fazemos que traz mais ou menos glória para Deus, e sim como fazemos. Somos
cristãos em todos os momentos, em todos os lugares, fazendo todas as coisas,
não apenas quando estamos de batina ou de terno e gravata encaixotados dentro
de um “templo” religioso. Ideias como essas revolucionaram nações inteiras na
Europa e serviram como grandes fogueiras que deixaram o velho continente em
chamas e o corpo de inúmeros mártires cristãos em cinzas neste período da
história.
Foram os reformadores que tiveram
a coragem de tomar a autoridade da igreja das mãos da tradição e do clero e
entregá-la de volta às Sagradas Escrituras, foram eles que nos lembraram
novamente que somos salvos apenas pela graça, mediante a fé, e que a obra da
salvação e qualquer movimento de avivamento nunca foi e nunca será
protagonizado e provocado por algum homem, e que todo aquele que crê, só crê
porque o Espírito Santo o convenceu do pecado da justiça e do juízo. Os
reformadores nos lembraram que glorificamos a Deus não apenas nos monastérios e
nos templos, e que não precisamos demonizar o mundo, a criação e tudo que neles
há. Foi a cidade de Genebra, pelas mãos de um reformador, a primeira cidade na
Europa a ter saneamento básico, polícia, água encanada, hospitais e o parto de
infantes regulamentado e assistido por profissionais da área. Boa parte da
noção ocidental de democracia, república, arte, justiça, liberdade de imprensa,
direitos humanos, defesa de minorias e educação vem do movimento reformista.
Foram os reformadores que traduziram a Escritura para diversas línguas. Se a
Bíblia Sagrada hoje pode ser lida em português e tantos outros idiomas, é
porque homens e mulheres sofreram muito, a ponto de derramarem o próprio sangue
por esta causa. A fundamentação e o aperfeiçoamento de línguas como o alemão e
o francês estão ligados profundamente a obras do período da reforma como a
tradução da Bíblia Sagrada para o alemão e As Institutas da Religião Cristã,
respectivamente.
O escritor Alister McGrath em seu
livro “Origens Intelectuais da Reforma” faz um questionamento interessante, ele
pergunta: a Reforma Protestante alcançou seu objetivo? O motivo principal que
era reformar o que já estava criado foi alcançado? Creio que uma resposta
sensata diante desta questão seria não. Não era intenção de Martinho Lutero
dividir a igreja, antes, sua proposta era reformá-la! No entanto isso não
aconteceu, a Igreja Católica Romana se fechou, excomungou-o como herege, veio a
contrarreforma e o protestantismo começou a se expandir, tomar forma e ganhar
contornos cada vez mais robustos. É importante não atribuir status canônico aos
reformadores e suas obras, são homens como todos nós, que tiveram suas falhas
como quaisquer outros, contudo, foram escolhidos por Deus para uma missão
grandiosa que marcaria o planeta para todo sempre. A reforma da igreja como
pensavam os primeiros reformadores, em certo sentido, foi um fracasso, mas nos
apontou caminhos, trouxe luz a muitas mazelas escondidas do seio de uma
instituição religiosa gigantesca e fundamentou filosófica e teologicamente a
prática da Igreja de Cristo daquele momento em diante.
A reforma protestante charge
O que Lutero e Cia
nunca imaginaram que aconteceria
Numa breve leitura do cenário do
protestantismo atual no Brasil é possível perceber um retrocesso preocupante em
relação a grande parte do que foi a luta do movimento reformado. Vejamos alguns
pontos:
— Grandes denominações centradas
na figura de uma única pessoa, prática que faz alusão a uma espécie de papismo
e atenta contra o princípio protestante do sacerdócio universal dos crentes.
— Tradicionalismo ou
denominacionalismo exacerbado que em diversos momentos toma o lugar das
Escrituras Sagradas no governo da igreja.
— Redemonização do mundo, que
fere o princípio que a criação é boa e bela e Deus, em sua missão (MissioDei) a
está reconciliando consigo mesmo por meio de Seu Filho Jesus, utilizando-se
muitas vezes de Seus santos espalhados pelo mundo.
— Isolacionismo, ou seja, a ideia
de que para ser santo deve-se evitar o contato com o mundo, que fere o ensino
reformado de santidade ativa no mundo.
— Teologia da prosperidade que
fere contundentemente a memória e os ensinos dos mártires e com toda certeza
seria escorraçada pelos reformadores.
— Teologia dos que são cabeça e
não cauda, que dominam ao invés de serem dominados, chamada teologia do
domínio, nega o chamado do cristão ao serviço sacrificial.
— Alienação política ou a
política feita em causa própria, fere a ideia do exercício político a serviço
de toda nação para glória de Deus e não a serviço de uma minoria para glória de
um grupo.
— Insensibilidade e afastamento
social contrasta com as obras de misericórdia e amor que eram pontos centrais
do ensino e da vida dos reformadores.
— Preconceito com o conhecimento
científico, principalmente em relação às ciências humanas e com os estudos em
geral, completamente antagônico aos títulos de mestres e doutores de inúmeros
mestres reformadores que, diga-se de passagem, tinham como meta a educação e a
construção de universidades.
Olhar no retrovisor da história
nesse momento de comemoração dos 499 anos de Reforma Protestante é extremamente
necessário. Para onde estamos indo como povo de Deus espalhados por esse mundo?
O que temos acrescentado, qual a nossa contribuição aos de fora da igreja? Que
tipo de evangelho tem sido pregado do alto de nossos púlpitos? Temos honrado o
sangue de tantos e tantos mártires da causa do evangelho? Os reformadores se
sentiriam parte das igrejas evangélicas atuais? É a glória de Deus que estamos
buscando acima de todos os outros interesses como igreja de Cristo em solo
brasileiro?
É necessário que nesse 31 de
Outubro de 2016, deixemos o Halloween Gospel de lado e dediquemos mais tempo
para o estudo de onde viemos, do que diziam, escreviam e de como viviam os
fundadores do movimento ao qual, pelo menos no discurso, dizemos fazer parte.
Conforme disse acima, a reforma protestante nos apontou caminhos, caminhos
preciosos desbravados a duras penas, à custa de muito sangue e trabalho. Cabe a
nós, em nossa geração, contextualizar todas estas realidades e fundamentados no
temor do Senhor, na Bíblia Sagrada e no exemplo destes piedosos e fiéis homens
de Deus, glorificarmos o nome de Cristo Jesus em todas as esferas da vida, o
tempo todo e em todos os lugares. Sejamos corajosos! Que Deus abençoe a igreja
brasileira e que nos lembremos hoje, mais do que nunca, de um dos principais
lemas da Reforma que diz: igreja reformada sempre se reformando.
Que Deus nos alcance!
Lucas Freitas é:
Aprendiz da vida e dos caminhos
que ela faz, estudante presbiteriano agraciado e um proclamador falho daquele
que deve ser proclamado. Alcançado pelo cuidado do Pai.
O artigo original poderá ser acessado
por meio desse link aqui:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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Os comentários não
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Irmão, Alex,
ResponderExcluirParabéns e obrigado pelo excelente artigo. Esse é um daqueles artigos, que a gente precisa imprimir.