Hoje estamos publicando um artigo
da autoria do Prof. Dr. Wilson Roberto Vieira Ferreira que nos apresenta sua
avaliação do filme Passengers —
Passageiros. O filme procura recontar a história de Adão e Eva da
perspectiva gnóstica e lida com temas queridos pelos cristãos, tais como:
liberdade, ansiedade, angústia autoconhecimento, questões morais de todas as
ordens e etc. Apesar das posições do prof. Wilson não representarem as opiniões
do Blog O Grande Diálogo, ainda assim a leitura do seu artigo é recomendada
como parte da oportunidade para discussão que propicia.
O
filósofo KierkegAard vai a Hollywood no filme "Passageiros"
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Por que diante do precipício ao
mesmo tempo em que temos medo, também sentimos o impulso de saltar para o fundo
do abismo? Em 1844 o filósofo Søren
Kierkegaard disse que isso deriva da ansiedade da descoberta de sermos livres
para saltar ou não saltar. E sempre temos medo daquilo que mais
desejamos. “Passageiros” (Passengers, 2016) retoma essas ideias do filósofo
dinamarquês, inclusive com a referencia do abismo: só, no espaço sideral,
diante do vazio do Universo, o homem teme por descobrir que é livre, como se
retornasse ao mito do Paraíso, antes de Adão e Eva terem descoberto a árvore do
conhecimento. “Passageiros” é mais uma amostra da recente guinada metafísica de
Hollywood sob camadas de entretenimento e efeitos digitais. Assim como a
animação “WALL-E” (2008), também faz uma releitura gnóstica do Gênesis bíblico:
como o homem, prisioneiro numa gigantesca espaçonave-resort que ruma para a
destruição, pode conquistar a liberdade e autoconhecimento.
Passageiros (2016) é um ótimo
exemplo sobre a guinada metafísica dos filmes hollywoodianos: o mix de
mitologias e simbolismos filosóficos. Mais precisamente, sobre como, sob a
superfície de entretenimento com muito efeitos digitais, os filmes comerciais
desfiam sérios conceitos filosóficos tendo com fio condutor a mitologia
gnóstica.
Lembrem de filmes como Lucy,
Ex-Machina e Transcendence onde o conceito nietzschiano de “vontade de
potencia” é introduzido por meio da discussão TecnoGnóstica da Inteligência
Artificial; ou os simbolismos freudianos da interpretação dos sonhos aplicados
em uma narrativa PsicoGnóstica no filme A Passagem (Stay, 2005).
E não poderia ser de outra forma:
um diretor nórdico (Morten Tyldum, O Jogo da Imitação) introduz conceitos
filosóficos do filósofo dinamarquês Kierkegaard em uma narrativa que faz uma
alusão invertida do mito de Adão e Eva do Gênesis bíblico em uma narrativa da
jornada do herói gnóstico — acordar prisioneiro em um cosmos que caminha para a
entropia e destruição.
Uma gigantesca espaçonave
(simbolicamente de forma helicoidal do DNA humano) atravessa a galáxia em uma
viagem de 120 anos para uma colônia em um remoto planeta transportando milhares
de pessoas em câmaras de hibernação. Porém, uma má função resulta no despertar
prematuro de um passageiro, 90 anos mais cedo da chegada prevista. Ele se vê
sozinho numa gigantesca nave automática que mais parece uma mistura de shopping
center com hotel-resort.
Sozinho naquele microcosmo, cujas
más funções começam lentamente a contaminar toda a nave, e junto com 5.000
almas hibernando, o protagonista será confrontado com sérias questões morais, a
angústia e a ansiedade. Mas tudo isso traduzido pela filosofia de Søren
Kierkegaard (1813-1855), mais precisamente na sua obra O Conceito de Ansiedade
de 1844, muito tempo antes do Existencialismo e da Psicanálise.
O Filme
Jim (Chris Pratt) é um dos 5.000
passageiros, mais a tripulação, mantidos em câmaras de hibernação, na
espaçonave automática Avalon. Viajando a metade da velocidade da luz, Avalon
ruma em direção da colônia Homestead II em uma jornada de 120 anos. Após 30
anos, a Avalon atravessa uma região do espaço com uma intensa chuva de meteoros
o que obriga a nave a concentrar quase a totalidade da energia nos seus
escudos. Isso produzirá uma lenta disseminação de pequenas más funções na
Avalon.
E Jim é a primeira vítima: sua câmara de hibernação desperta-o prematuramente, como se a espaçonave já estivesse se aproximando de Homestead II. Tudo parece normal (o protocolo de boas vindas é acionado automaticamente pelos sistemas da nave), mas logo Jim cai em si – ele está sozinho em uma gigantesca espaçonave, faltando ainda 89 anos para o destino. Morrerá sozinho antes do restante dos passageiros despertar.
No início temos a clássica
jornada do herói: primeiro ele fica confuso e desesperado. Depois,
aparentemente aceita o destino e passa a usufruir de todos os serviços daquele
autêntico hotel resort espacial – come sushi todas as noites e bebe uísque com
a única companhia, o barman robô chamado Arthur (Michael Sheen) programado para
bate papos superficiais de balcão de bar com os clientes.
A nave Avalon, o design interior
e o balcão com o solicito robô barman são evidentes alusões a 2001 e O
Iluminado de Stanley Kubrick. Assim como em O Iluminado, a solidão num lugar
distante de qualquer coisa humana na Galáxia começa a enlouquecer o
protagonista – por meses caminha nu pela nave, deixa crescer uma espessa barba,
embriaga-se em longas conversas com repostas protocolares do barman androide,
faz caminhadas espaciais e por horas fica olhando para o vazio e quase tenta
suicídio em uma câmara de ar na saída da Avalon.
A partir daí, Jim passa o tempo
lendo textos e os registros de vídeo dos passageiros em hibernação. Até ter um
interesse peculiar por Aurora (Jennifer Lawrence), jornalista e escritora. Como
engenheiro mecânico, Jim leu todos os manuais sobre as câmaras de hibernação o
que o coloca em uma sinuca existencial e moral: um ano de solidão lhe deu uma
inesperada consciência de liberdade. Jim pode despertá-la para dividir com ele
a solidão. Mas por outro lado, isso significava roubar-lhe a vida que Aurora
teria no futuro.
Jim convence a si mesmo que
poderiam se apaixonar e ele iria construir uma casa para ela – um dos temas ao
longo do filme é como a automação impossibilita as pessoas de construírem
coisas com suas próprias mãos, roubando a humanidade dos objetos.
Depois de muitos dilemas éticos e
existenciais, Jim decide acordá-la fazendo tudo parecer mais uma disfunção da
nave Avalon.
De um lado, a solidão e a
liberdade; do outro, o sequestro da vida de Aurora por Jim. Que ainda esconde
um tema sombrio: o horror feminista pelo abuso emocional numa cultura do
estupro que vê as mulheres como objeto de possessão. Jim é bonito, charmoso e
sedutor. Mas esconde uma sombria escolha moral.
O Gênesis gnóstico
Passageiros faz uma interessante analogia com o Gênesis bíblico: o
início de uma convivência fundada no pecado original, porém de forma invertida
– foi Adão/Jim que conheceu o Mal (a liberdade de escolha) e não Eva/Aurora. O
filme faz até uma alusão à árvore cujo fruto Jim não pode comer: a máquina de
café automático Spice Extreme Latte, porque não é um passageiro com pulseira
“ouro”. Quando Aurora/Eva chega, os dois podem consumir juntos os produtos do
nível ouro, enquanto Jim sabe que fez algo muito errado.
O hotel-resort da nave Avalon é o
Paraíso que tenta expulsar Jim e Aurora como uma espécie de punição por terem
comido o fruto do Conhecimento – Jim, a descoberta da liberdade; e Aurora,
permitir a Jim ter acesso “ouro” a serviços.
Mas esse Gênesis parece ter uma
releitura bem gnóstica: assim como no Gênesis onde a mulher surge da costela de
Adão, é Jim quem desperta uma mulher. Mas Adão e Eva despertam em uma Criação
que já está em crise – as más funções anunciam uma destruição próxima de
Avalon. Não foi o pecado que fez a Criação incorrer na Queda. A Queda foi a
própria criação, que manteve o homem prisioneiro e colocado em condições
existenciais extremas que só permitem tirar de dentro do homem o pior de si
mesmo.
Aurora descobrirá como um homem
aparentemente decente e charmoso foi capaz de roubar-lhe a própria vida. Como é
colocado a certa altura em uma linha de diálogo, Jim era alguém que estava se
afogando. E toda pessoa que se afoga agarra-se em alguém para levar junto.
Passageiros oferece mais uma releitura gnóstica da mitologia do
Paraíso perdido, numa versão um pouco diferente da animação WALL-E (2008) - ver artigo sobre WALLE por meio do link abaixo:
http://cinegnose.blogspot.com.br/2011/02/wall-e-e-eva-disney-faz-releitura-do.html
Tal como na
animação, o homem é prisioneiro em uma gigantesca espaçonave-resort que oferece
comodismo e conforto. Mas que ao mesmo tempo oferece a oportunidade do
autoconhecimento e a descoberta da liberdade.
Kierkegaard vai a
Hollywood
Dessa maneira, Passageiros ingressa na ideia principal
do livro O Conceito de Ansiedade do filósofo Kierkegaard, que inclusive é
visualmente referenciado no filme.
Kierkegaard usa o exemplo de um
homem à beira do precipício. Quando o homem olha para baixo ele sente o medo da
queda. Mas ao mesmo tempo, sente um grande impulso de se atirar para o fundo do
abismo. Esse sentimento paradoxal deriva da nossa ansiedade pela descoberta de
que somos livres para escolher saltar ou não saltar. O mero fato de sabermos
que temos a liberdade de escolha por sermos seres finitos diante da eternidade
do Universo desperta ao mesmo tempo a solidão e a completa liberdade. Isso
criaria tanto a possibilidade do autoconhecimento como da ansiedade neurótica –
a angústia, que impede a evolução da ansiedade normal em autoconhecimento.
Um dos momentos-chave do filme é
quando Jim em um dos seus passeios espaciais vê, solitário, a imensidão do
Universo. Isso dá uma inesperada sensação de liberdade – ele pode se atirar no
espaço, se matar, ou retornar e despertar Aurora. São atos equânimes moralmente
naquelas condições existenciais nas quais Jim é prisioneiro.
Para Kierkegaard o mito de Adão
retrata o despertar do indivíduo para a autoconsciência. Uma representação
poética do instante em que o indivíduo coloca-se frente a si mesmo.
Tanto Jim quanto Aurora temem a
extrema experiência simultânea da solidão e liberdade de poderem construir um
novo mundo dentro do microcosmo da espaçonave Avalon. Mas, como Kierkegaard que
antecipou muitas ideias freudianas, aquilo que mais desejamos é sempre o que
mais tememos.
A ansiedade neurótica à
descoberta de que sãos seres livres faz Jim pensar no suicídio e Aurora em
tentar retornar à câmara de hibernação.
O filme Passageiros é uma jornada de autoconhecimento para os
protagonistas: a transformação do medo da liberdade em atos que ecoarão na
posteridade, como acompanhamos na sequência final - quando finalmente a nave
Avalon chega ao destino 89 anos depois e os passageiros descobrem o legado
deixado por Jim e Aurora.
Assista o trailer legendado em português por meio do link abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=yRPECNxkMVA
O artigo original poderá ser
acessado por meio do link abaixo:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
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