O artigo abaixo foi
publicado pelo site da Editora Fiel e é de autoria de Peter Sanlon.
A Pregação Mudou Desde a Igreja Primitiva?
Peter Sanlon
A pregação expositiva
sistemática e regular da Escritura tem um papel central em minha visão para o
ministério eclesiástico normal. Quando prego através de cada livro da Bíblia
para as minhas congregações, creio que estou continuando um ofício e uma
tradição que tem suas raízes no Pentateuco, nos métodos de ensino judaicos e na
Igreja Apostólica. O pouco espaço que tenho não me permite elucidar a natureza
dessas primeiras florações da pregação expositiva; ao invés disso, foi–me
pedido que compartilhasse algumas reflexões sobre a natureza de nossa obrigação
para com a pregação da Igreja Primitiva pós-bíblica.
Os pregadores da
Igreja Primitiva que eu vejo como mestres de ofício incluem Ambrósio, Jerônimo,
Gregório de Nazianzo, Crisóstomo, Atanásio, Agostinho e Pedro Crisólogo.
Contudo, quando leio os sermões desses praticantes da pregação expositiva, é
impossível não notar que a pregação deles parece estranha àquilo que se pensa
hoje como uma exposição. Como a pregação expositiva moderna pode ser dependente
da pregação da Igreja Primitiva que parece tão estranha a nós?
Uma
convicção comum aos antigos e modernos
Em primeiro lugar, é
vital enfatizar a convicção que nós e os pregadores da patrística temos em
comum. Tanto praticantes antigos quanto contemporâneos da pregação expositiva
criam que a Escritura é verdadeira em tudo o que ela afirma. Além disso, ambos
os grupos defendem que quando a Bíblia é pregada, o próprio Deus fala.
Em muitos lugares os
Pais, como Tertuliano, afirmaram que o que quer que a Escritura ensine é a
verdade.1 Agostinho também declarou: “Aprendi a render tal respeito e honra
apenas aos livros canônicos da Escritura: apenas nesses creio decisivamente que
os autores eram completamente livres de erro”.2 Tais afirmações explícitas da
confiabilidade bíblica são valiosas na reconstrução da visão patrística da
Escritura.
Todavia, as
implicações que podem ser tiradas de como a Escritura foi usada por toda a
vasta obra dos Pais da Igreja são, no mínimo, tão relevantes quanto. A pregação
era o principal ponto em que a Bíblia era usada na Igreja Primitiva, e quando
menções após menções são empilhadas sobre citações após citações, fica
abundantemente claro que os pregadores antigos lidavam com a Escritura daquela
maneira porque criam que ela era verdadeira e que através dela Deus falava aos
seus ouvintes.
Como Agostinho
pregou: “Tratemos a Escritura como Escritura: como Deus falando”.3 Sem tal
convicção há pouca motivação para debruçar-se sobre o texto bíblico na
preparação do sermão, como os Pais faziam.
Por que, então, os
sermões da Igreja Primitiva parecem tão diferentes dos pregadores modernos
ocidentais que compartilham do mesmo comprometimento para com o papel da
Escritura no discurso de Deus? Os sermões da patrística sempre utilizam
alegorias obscuras, presumem significado nos números e podem saltar por passagens
bíblicas aparentemente aleatoriamente. Os sermões da patrística podem conter
reflexões e excursões que aparentemente divergem grandemente do texto sendo
considerado. A ideia de que a pregação expositiva moderna é descendente de tais
homilias antigas seria, meramente, uma ilusão?
A
pregação expositiva se relaciona com a cultura pagã
Pregação expositiva é
um ofício, uma arte e uma disciplina pastoral que interage com a cultura pagã
em geral e com a oratória pagã em especial.
Os pregadores da
patrística (e os pregadores contemporâneos) comprometidos com a pregação
expositiva têm visões radicalmente divergentes da erudição pagã. Alguns
pregadores teciam citações de autores pagãos no tecido de suas exposições. Por
exemplo, Ambrósio tem mais de cem citações de Virgílio em sermões de sua
autoria a que temos acesso hoje, e usava o autor médico Galeno para ajudá-lo a
explicar Gênesis. Tertuliano desacreditou o ensino pagão como inimigo da
teologia. O fato de seu estilo de discurso se utilizar de técnicas retóricas
forjadas nas escolas pagãs nos lembra que ninguém pode escapar completamente do
seu contexto.
A frequência das
citações de autores pagãos é a única e mais óbvia forma que o aprendizado pagão
influenciou os sermões da patrística. Mais profundamente, a cultura pagã do
mundo antigo era fascinada pelas palavras — seu sentido, formação e
significado. O empilhamento nos sermões de citação bíblica após citação
bíblica, assim como o uso de passagens bíblicas mais claras para interpretar
passagens mais obscuras, eram técnicas que os pregadores aprenderam nas
técnicas escolas pagãs usavam para interpretar Homero.
Assim como na
Reforma, o contexto educacional dos pregadores da patrística moldou seus
ministérios profundamente. O primeiro manual para o aprendizado da pregação foi
escrito por Agostinho. Ele continua extensas seções refletindo sobre como se
apropriar melhor das lições de oratória de Cícero. Agostinho via valor no
discernimento pagão de como falar bem: “Por que aqueles que falam a verdade o
fariam como se fossem estúpidos, enfadonhos e sonolentos?”.4 Apesar de elogiar
algumas lições de Cícero, no fim Agostinho considerou que orar e ouvir bons
pregadores era mais importante.5
Muito daquilo que faz
os sermões da patrística parecerem diferentes dos sermões modernos surge do
fato de que, em nossos ministérios de pregação expositiva, nós e nossos
antepassados estamos (deliberadamente ou não) usando os melhores conhecimentos
pagãos disponíveis sobre hermenêutica e comunicação. Os pregadores antigos
criam que a Bíblia era uma palavra divina de rica verdade para os ouvintes.
Eles buscavam significado em padrões de números porque a cultura pagã via
beleza, verdade e significado residindo em mistérios profundos nos números. Se
era assim com a matemática, os discursos persuasivos e a filosofia, pensavam,
certamente deve ser muito mais com um texto inspirado pelo próprio Deus. O
contexto do aprendizado secular moldou as abordagens dos pregadores antigos ao
seu ofício.
O mesmo é verdadeiro
quando se fala de questões práticas da pregação. Alguns pregadores escreviam
seus sermões por completo e depois os liam. Outros, como Agostinho, meditavam
na passagem durante a semana e depois falavam extemporaneamente. Muitas escolas
de retórica ensinavam seus alunos a falar em público fazendo-lhes ler e
memorizar discursos. Quintiliano, o orador pagão, argumentou que essa era uma
maneira superficial e imatura de falar em público. Se um pregador concordasse
com Quintiliano ou não acabava moldando sua prática com relação a falar a
partir de um roteiro.
Seria um erro grave
assumir que nossas abordagens modernas ao entendimento e à pregação da Bíblia
são automaticamente superiores àqueles dos pregadores antigos. Também seria
incorreto não observar o fato de que a pregação expositiva moderna é
descendente da homilética da patrística e partilha de suas convicções
fundamentais.
A
pregação expositiva se desenvolve com a história da igreja
Outra razão pela qual
os sermões da patrística parecem tão singulares é porque foram pregados por pessoas
de dentro do contexto da história da igreja em que habitavam. No mundo antigo,
alguns pregadores se beneficiaram ao fazer referências cruzadas de traduções
iniciadas por Orígenes em sua Héxapla. Agostinho teve dúvida se deveria adotar
a tradução bíblica mais erudita de Jerônimo ou continuar com a versão com a
qual sua congregação estava mais familiarizada. Ele optou por manter a tradução
menos precisa para a sua congregação por causa de sua sensibilidade pastoral,
enquanto lentamente integrava a tradução de Jerônimo aos seus escritos
acadêmicos.
Conforme a história
da igreja progredia, também progrediam as ferramentas, e a forma de pregação
expositiva se desenvolvia. Uma das áreas mais óbvias onde isso se aplicava era
na história da salvação. Na Igreja Primitiva, os pregadores estavam muito
conscientes de que havia um desenvolvimento dentro da história bíblica. Irineu
desenvolveu uma teologia de “recapitulação” baseada nas repetições que se
percebia dentro da história da salvação como a árvore em Gênesis 2 e o madeiro
em que Cristo foi pendurado. A rejeição herética de Marcião do Antigo
Testamento e interações com estudiosos judeus levaram muitos pregadores a
pregar entre a semelhança e a unidade entre os Testamentos. A ênfase de
Agostinho na graça na controvérsia pelagiana o levou a enfatizar a diferença
entre a lei e o evangelho. Todas essas — e a aparente presença da prática da
alegoria — eram tentativas primitivas dos pregadores de se dedicarem às
passagens das Escrituras de maneira a fazer justiça à história da salvação por
inteiro.
Dados os muitos
desenvolvimentos na história da igreja que nos oferecem novas maneiras de
articular a história da salvação e lhe dar nuances, é compreensível que os
sermões da patrística possam parecer bem estranhos em suas interpretações
teológicas. Na realidade, os grandes pregadores dos primeiros séculos estavam
mapeando as possibilidades para configurar unidade e diversidade dentro do
cânon — algo com o que nós temos dificuldade e diferimos ainda hoje.
Conclusão
A pregação expositiva
mudou desde a igreja primitiva? Na questão de que a pregação expositiva deve se
relacionar com a cultura pagã e desenvolver com a história da igreja, a
resposta é sim. Se isso nos cegasse quanto às convicções centrais partilhadas a
respeito da autoridade da Escritura e a paixão que leva os pregadores a usar o
melhor material a que tem acesso na cultura e na teologia para pregar a Bíblia
fielmente, nós não só estaríamos desonrando os santos que labutaram antes de
nós, mas também deserdaríamos a nós mesmos de um tesouro que pode nos ajudar a
aprimorar a nossa pregação — a pregação da Igreja Primitiva.
Tradução: Alan
Cristie
Revisão: Vinícius
Musselman Pimentel
O leitor tem
permissão para divulgar e distribuir esse texto, desde que não altere seu
formato, conteúdo e / ou tradução e que informe os créditos tanto de autoria,
como de tradução e copyright. Em caso de dúvidas, faça contato com a Editora
Fiel.
O Artigo original
poderá ser visto por meio do link a seguir:
http://www.ministeriofiel.com.br/artigos/detalhes/847/A_Pregacao_Mudou_Desde_a_Igreja_Primitiva?utm_source=inf-set-2015&utm_medium=inf-set-2015&utm_campaign=inf-set-2015
Autor
Peter Sanlon é
ministro da St. Mark’s Church em Tunbridge Wells, Reino Unido. Ele é autor de
"Augustine’s Theology of Preaching".
Notas:
1 - Tertuliano, A
Carne de Cristo, 6.
2 - Agostinho,
Epístola 82.3.
3 - Agostinho, Sermão
162C.15.
4 - Agostinho, A
Doutrina Cristã, 4.3.
5 - Agostinho, A
Doutrina Cristã, 4.32.
Que Deus abençoe a
todos.
Alexandros Meimaridis
PS.
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Desde
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