terça-feira, 23 de agosto de 2016

O SERVO SOFREDOR DE ISAÍAS E O DEBATE COM OS JUDEUS — PARTE 004 — O CASTIGO QUE NOS TRAZ A PAZ



CONTINUAÇÃO... PARTE 004

53:4—6: A morte vigária do Servo

Os v.3—6 descrevem a morte substitutiva do Servo. O texto apresenta a primeira pessoa do plural (“nós”). É a comunidade que fala, como em 53:1—3. O Servo foi castigado no lugar das pessoas dessa comunidade.

4 Certamente, ele carregou os nossos sofrimentos37
e as nossas dores ele38  levou;
e o reputávamos como machucado, ferido por Deus e oprimido.

5 Mas ele foi traspassado39  pelas nossas transgressões
e moído pelas nossas iniquidades;
o castigo que nos traz a paz estava sobre ele,40
e suas feridas foram cura para nós.41

6 Todos nós, como ovelhas, andávamos desgarrados;
cada um se desviava pelo seu caminho,
mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós.

No v.4, a linguagem das duas primeiras frases aproxima-se da segunda frase do v.3 (“homem de dores e que conhece o sofrimento”). Novamente o profeta emprega os termos mak’obot “dores” e holi “sofrimento”, “doença”. Como já foi observado na análise do v.3, o termo holi não somente refere-se aos males físicos relacionados à doença, mas abrange todo tipo de sofrimento humano. mak’obot “dores” inclui sofrimentos físicos e mentais. Portanto, o Servo não sofre de alguma doença infectocontagiosa. O texto simplesmente realça sua dor e o seu sofrimento, tanto no âmbito emocional como no físico.  A análise dos verbos utilizados aqui revela que a morte do Servo seria vigária.  O verbo nasa’ “carregar” (“levantar”, “erguer”, “tomar”) apresenta o sentido da morte substitutiva do Servo. O mesmo verbo é empregado em Levítico16:22 em referência ao bode vivo, que, no “dia da expiação” (yom kippur), carregava sobre si as “iniquidades” de Israel, e as levava para o deserto: “aquele bode levará (nasa’) sobre si todas as iniquidades deles para terra solitária”.  O verbo sabal “carregar” apresenta o sentido de “carregar uma carga”, “arrastar-se”. No caso, era o ‘fardo’ do sofrimento da comunidade que pesava sobre o Servo. Ele “tomou sobre si” e “levou sobre si”; “consequentemente, carregou-o vicariamente como alguém que toma um fardo pesado do ombro de outrem e o carrega para aquela pessoa”.42

A última frase do v.4 continua a descrever o sofrimento do Servo. Ele é considerado pela comunidade como “machucado”, tradução de naga‘qal particípio “tocar”, “alcançar”, “bater”. A expressão seguinte o descreve como “ferido por Deus e oprimido”. O primeiro verbo, nakah hofal particípio “ser ferido”, “ser golpeado”, apresenta “Deus” como sujeito da ação. O segundo verbo, ‘anah poal particípio, pode ser traduzido como “ser oprimido”, “ser afligido”, “ser humilhado”, e, à semelhança do verbo anterior, a ação apresentada por ele é praticada por “Deus”. Quer dizer, não são homens que levam o Servo ao sofrimento, mas o próprio Deus. O plano não é humano; é divino.

Se no v.4 o Servo carrega sobre Si o sofrimento da comunidade, o v.5 explicitará que sua morte substitutiva não ocorre somente para suportar as dores do seu povo, mas, principalmente, para proporcionar o perdão dos pecados para ele. No TM/Texto Massorético, a forma verbal meholal “foi transpassado” é o poal particípio de halal “profanar”. Segundo a BHS, provavelmente trata-se de mehullal “profanado”, corroborado por Aquila e pelo Targum. No poal, grau em que se encontra o verbo hebraico, o sentido é de “ser ferido” (Strong’s Hebrew), e a raiz halal alude ao perfurar do corpo com um instrumento afiado — Isaías 51:9; Salmos 109:22).43  Trata-se, pois, de uma morte violenta — Isaías 22:2; 66:16 —, resultante de uma perfuração. É impossível não identificar aqui aquilo que é descrito por

Mateus 27:35

Depois de o crucificarem, repartiram entre si as suas vestes, tirando a sorte.

O verbo grego utilizado por Mateus para “crucificar” é stauroo, que significa “fixar” ou “fincar com estacas”. A palavra “cruz” literalmente significa “estaca”, porque originalmente, no antigo Israel, era uma estaca usada em fortificações, e depois passou a ser usada como instrumento de tortura e morte. Num período posterior, possivelmente na época dos romanos, adicionou-se uma travessa horizontal (patibulum), na qual a pessoa era amarrada ou cravada. Notadamente o texto isaiano já antevia a crucificação do Messias, exatamente nos termos em que é descrita no NT.

Na sequência, o verbo “moído” é a tradução do hebraico dakah pual particípio “ser esmagada”, “ser despedaçado”. A razão de tamanha violência são as “iniquidades” da comunidade. O hebraico ‘awon “iniquidade” apresenta o sentido de “perversidade”, “depravação”. Já o termo pesha’ “transgressão”, na primeira frase do v.5, enfatiza a rebelião contra a autoridade de Deus.44

Os termos “transpassado” e “moído”, juntos, descrevem a terrível violência de Deus contra o Seu Servo. Afinal, é assim que Deus trata o pecado: com morte violenta. Nota-se aqui a seriedade da rebelião contra Deus. Não há outro jeito de lidar com o pecado, senão através da morte que é o salário do pecado. Assim, a morte violenta do Servo sinaliza a seriedade do pecado.

É importante também notar que os antigos israelitas acreditavam que todo sofrimento é resultado do pecado (veja a história de Jó; também João 9:2). Segundo esse ponto de vista, muitos achavam que o Servo estava sendo castigado por Deus por causa de algum pecado por ele cometido, quando, na verdade, estava sofrendo por causa das nossas transgressões.45

O final do v.5 ressalta que a morte do Servo trouxe “paz” para a comunidade: musar xelomenu ‘alayw “o castigo que nos traz a paz estava sobre ele”, literalmente “o castigo da nossa paz”. No hebraico trata-se de um genitivo que indica propósito: a punição sobre o Servo apresenta o propósito de trazer a “nossa paz”, implicando que a paz com Deus foi obtida mediante a morte do Servo que sofreu a justa punição requerida pelo próprio Deus.46  O termo musar “castigo” evoca a “disciplina” de um pai aplicada ao filho —

Jó 5:17

Bem-aventurado é o homem a quem Deus disciplina; não desprezes, pois, a disciplina do Todo-Poderoso.

Provérbios 22:15

A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela.

Provérbios 23:13

Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara, não morrerá.

A “paz”, xalom, é o bem-estar resultante de relações pessoais equilibradas e saudáveis. Quando o filho se rebela, o pai é ofendido, e o xalom/”bem-estar” é rompido; somente o “castigo/disciplina” pode satisfazer a justiça e restabelecer o xalom.47  Assim também, Deus não poderia se relacionar com o homem, até que sua justiça fosse satisfeita. Foi justamente a obra de Cristo que tornou possível a paz entre Deus e o homem —

Romanos 5:1

Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.

A última frase do v.5 afirma que “suas feridas foram cura para nós”. O verbo rapa’ “curar” não se refere somente à cura física. Isaltino Gomes afirma que, em Isaías 6:10, o verbo está relacionado com a conversão, e em 1 Pedro 2:24 “este texto é aplicado à obra de Jesus e a questão de ser sarado está ligado a ser salvo... ‘Sarar’ ou ‘curar’ é mais amplo que não ter doenças. É ter a maior de todas as curas, a saúde de relacionar-se bem com Deus.”48  Em Isaías 19:22, o mesmo verbo também está relacionado com a conversão. Portanto, é possível afirmar que rapa’ alude tanto à cura física quanto à espiritual, indicando a restauração holística do ser humano, que, aliás, é um conceito soteriológico muito importante no Antigo Testamento.49

As duas primeiras frases do v.6 ilustram a rebelião do pecado humano. Aqueles que cometem “iniquidade” (hebr. ‘awon) são como ovelhas desgarradas. Na segunda frase, a palavra ledarko pode ser traduzida como “pelo seu caminho” ou “para o seu caminho”. O termo derek “caminho” está prefixado com a preposição le, “para”, “em direção a”, e sufixado com o pronome na terceira pessoa “seu”, “dele’. Ou sentido da frase é: “cada um queria seguir o seu próprio caminho”. Aqui está o cerne do pecado. É o egoísmo. É a busca pela realização pessoal elaborada a partir de uma vida que trilha seus próprios caminhos independentemente da vontade de Deus. É a rebelião contra Deus em nome da realização de sonhos pessoais.

A última frase do v.6, à semelhança do v.5, descreve a morte vigária do Servo. Mas há um enfoque especial nela: “mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós”. A morte do Servo efetiva a expiação da “iniquidade de todos nós”. A palavra hebraica kullanu “todos nós” ocorre no início do v.6 e no seu final. É a primeira e a última palavra do verso. No início, todos se rebelam contra Deus. No final, todos são perdoados pela morte do Servo. Então, todos pecaram, mas o perdão alcançado pela morte do Servo está disponível para todos. É preciso explicar, contudo, que o “todos”, no contexto do quarto Cântico do Servo, são o conjunto de pessoas que compõem a comunidade de ETERNO.

Nossa análise dos v.4-6 constatou que o “servo” mencionado nesses versos de modo algum pode ser aplicado a Israel. O povo de Israel e o de Judá sofreram merecidamente os exílios. Pecaram. Diferente de Israel, o Servo era inocente. O Servo enfrenta o sofrimento cruel por causa dos pecados dos outros.

CONTINUA...

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O texto original poderá ser acessado por meio desse link aqui:


Luciano R. Peterlevitz

Bacharel em Teologia (FTBC e FATEO/UMESP); Mestre e Doutor em Ciências da Religião, na área de Literatura e Religião no Mundo Bíblico, pela Universidade Metodista de São Paulo. Coordenador Acadêmico da Faculdade Teológica Batista de Campinas, onde também leciona Hebraico, Antigo Testamento e Hermenêutica Bíblica nos cursos de Bacharelado em Teologia e Pós-graduação em Exposição Bíblica.


Que Deus abençoe a todos.

Alexandros Meimaridis

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NOTAS

37 holayenu “nossos sofrimentos”. É mesmo termo do v.3, holi “doença, sofrimento”. Nelson Kirst et. al., Dicionário hebraico-português e aramaico-português, p. 69.

38 BHS: A Siríaca, a Vulgata e aproximadamente 20 manuscritos medievais apresentam o pronome na terceira pessoa hu’ “ele”.

39 meholal poal partícipio “transpassado”, de halal “profanar”. BHS: provavelmente mehullal “profanado”, corroborado por Aquila e pelo Targum.

40 musar xelomenu ‘alayw “o castigo que nos traz a paz estava sobre ele”, literalmente “o castigo da nossa paz”; um genitivo de propósito: “castigo designado para nossa paz”. John N. Oswalt, Comentário do Antigo Testamento: Isaías, p. 468.

41 rapa’ nifal perfeito singular seguindo pela preposição le (“para) com o pronome da primeira pessoa plural nu (nós).

42 J. Ridderbos, Isaías,p. 428.

43 Shalom M. Paul, Isaiah 40-66: Translation and Commentary, Grand Rapids, Eerdmans Publishing, 2012, p. 405 (Eerdmans Critical Commentary).

44 Gary V. Smith, Isaiah 40-66, p. 451.

45 Isaltino Gomes Coelho Filho, Isaías, p. 168-169.

46 Gary V. Smith, Isaiah 40-66, p. 451.

47 John N. Oswalt, Comentário do Antigo Testamento: Isaías, p. 473.

48 Isaltino Gomes Coelho Filho, Isaías, p. 170.

49 Gary V. Smith, Isaiah 40-66, p. 451.

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