A entrevista abaixo foi publicada
no site da Revista ISTOÉ e apesar de não refletir, as posições defendidas pelo
Blog o Grande Diálogo, ainda assim entendemos que a mesma contém verdades
importantes para a discussão cada vez mais presente que envolve a laicidade do
Estado brasileiro e os interesses dos representantes das religiões majoritárias
do catolicismo e dos evangélicos.
"A
liberdade religiosa está ameaçada no país"
Antropóloga Debora Diniz afirma
que o Estado está sendo questionado na Justiça por tentar privilegiar o ensino
católico nas escolas públicas e que livros didáticos associam os ateus aos
nazistas
Por Solange Azevedo
ESPECIALISTA: Debora desenvolve pesquisas sobre
laicidade e direitos humanos
O trabalho da antropóloga e
documentarista carioca Debora Diniz tem sido amplamente reconhecido mundo
afora. Aos 41 anos, ela já recebeu 78 prêmios por sua atuação como pesquisadora
e cineasta. Professora da Universidade de Brasília, Debora é autora de oito
livros. O último deles – “Laicidade e Ensino Religioso no Brasil” – trata de
uma discussão que está emergindo no País e deverá ser motivo de debates
acalorados no Supremo Tribunal Federal. “Além de a lei do Rio de Janeiro sobre
o ensino religioso nas escolas públicas estar sendo contestada no Supremo, há
uma ação da Procuradoria-Geral da República contra a concordata
Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em 2008”, lembra Debora. “Um
artigo da concordata prevê que o ensino religioso no País seja,
necessariamente, católico e confessional. Isso é inconstitucional.”
"O acordo Brasil-Vaticano
prevê que o ensino religioso seja, necessariamente, católico e
confessional"
"A criminalização da
homofobia incomoda comunidades religiosas porque resultará em restrição de
liberdade de expressão"
ISTOÉ -
O ensino religioso nas
escolas públicas, num Estado laico como o Brasil, é legítimo?
DEBORA DINIZ -
Sim e não. Sim porque está
previsto pela Constituição. E não quando se trata da coerência com o pacto
político. Chamo de coerência a harmonia com os outros princípios constitucionais:
da liberdade e do pluralismo religiosos e da separação entre o Estado e as
igrejas. Falsamente, se pressupõe que religião seria um conteúdo
necessário para a formação da cidadania.
ISTOÉ –
O pluralismo religioso
é respeitado nas escolas públicas?
DEBORA DINIZ -
Não. A Lei de Diretrizes e Bases
delega aos Estados o poder sobre a definição dos conteúdos e quem são os
professores habilitados. Isso não acontece com nenhuma outra matriz disciplinar
no País. A LDB diz que o ensino religioso não pode ser proselitista. Apesar
disso, legislações de vários Estados – como a do Rio de Janeiro – afirmam que
tem de ser confessional. Determinam que seja católico, evangélico.
ISTOÉ -
As escolas viraram
igrejas?
DEBORA DINIZ -
As aulas de ensino religioso, obrigatórias
nas escolas públicas, se transformaram num espaço permeável ao proselitismo. Não é possível a oferta do ensino religioso confessional sem ser
proselitista. Se formos para o sentido dicionarizado da palavra
proselitismo, é professar um ato de fé. É a catequização. O proselitismo é um
direito das religiões. Mas isso pode ocorrer na escola pública? A
LDB diz que não.
ISTOÉ -
É possível haver ensino
religioso sem ser proselitista?
DEBORA DINIZ -
É. A resposta de São Paulo foi
defini-lo como a história, a filosofia e a sociologia das religiões.
ISTOÉ -
São Paulo seria o
melhor exemplo de ensino religioso no País?
DEBORA DINIZ -
No que diz respeito ao decreto
estadual, segundo o qual o ensino não deve ser confessional, sim. Mas se é o
melhor exemplo na sala de aula, não temos pesquisas no Brasil para afirmar
isso. A LDB diz que a matrícula é facultativa. Então, também devemos perguntar:
o que a criança faz quando não está na aula de religião?
ISTOÉ -
O ensino religioso, da
forma como está configurado, é uma ameaça à liberdade religiosa?
DEBORA DINIZ -
É. Quanto mais confessional for a
regulamentação dos Estados, quanto mais os concursos públicos forem como o do
Rio – em que o indivíduo tem de apresentar um atestado da comunidade religiosa
a que pertence e, caso mude de religião, perde o concurso –, maior é a ameaça. A liberdade religiosa está ameaçada no País e a justiça religiosa também.
ISTOÉ -
Há uma tentativa de
privilegiar uma ou outra religião?
DEBORA DINIZ -
Quase todos os Estados se
apropriam do que aconteceu no Rio, nominando as religiões dos professores. No
Ceará, por exemplo, o professor tem de ter formação em escolas teológicas. Mas
religiões afro-brasileiras não têm a composição de uma teologia formal. Essa
exigência privilegia os católicos e os protestantes.
ISTOÉ -
Por que o MEC não define o conteúdo do ensino religioso?
DEBORA DINIZ -
Há uma falsa compreensão de que o
fenômeno religioso é um saber para iniciados, e não para especialistas laicos.
Também há um equívoco sobre o que define o pacto político num Estado laico. O
fenômeno religioso não é anterior ao fato político. Religião não pode ter
um status que não se subordine ao acordo constitucional e legislativo.
Isso é verdade em algumas coisas, tanto que o discurso do ódio não é
autorizado. O debate sobre a criminalização da homofobia causa tanto incômodo
às comunidades religiosas porque resultará em restrição de liberdade de
expressão. Não se poderá dizer que ser gay é grave perversão, como algumas
fazem atualmente.
ISTOÉ -
Os livros didáticos
dizem...
DEBORA DINIZ -
Dizem porque há essa lacuna de
regulação e de fiscalização. Há uma subordinação do nosso pacto político ao
fato religioso. O que é um equívoco. Também há uma falsa presunção de que o
saber religioso não possa ser revisado. O MEC tem um painel em que todas as
controvérsias científicas são avaliadas por uma equipe que diz o que pode e o
que não pode entrar nos livros didáticos. A despeito de pequenas comunidades no
campo da biologia dizerem que criacionismo é uma teoria legítima sobre a origem
do mundo, o filtro do MEC diz que criacionismo não é ciência.
Por que, então, o MEC não define o que pode entrar nos livros de ensino
religioso e os parâmetros curriculares?
ISTOÉ -
O que os livros
didáticos de religião pregam?
DEBORA DINIZ -
Avaliamos 25 livros didáticos de
editoras religiosas e das que têm os maiores números de obras aprovadas pelo
MEC para outras disciplinas. Expressões e valores cristãos estão presentes em
65% deles. Expressões da diversidade cultural e religiosa brasileira, como
religiões indígenas ou afro-brasileiras, não alcançam 5%. Muitas tratam
questões como a homofobia e a discriminação contra crianças deficientes de uma
maneira que, se fossem submetidas ao crivo do MEC, seriam reprovadas. A retórica sobre os deficientes é a pior possível. A
representação simbólica é de quem é curado, alguém que é objeto da piedade, que
deixa de ser leproso e de ser cego. É a do cadeirante dizendo obrigado, num
lugar de subalternidade.
ISTOÉ -
A submissão ao sagrado
é estimulada?
DEBORA DINIZ -
É uma submissão ao sagrado, à
confessionalidade. Mas a confessionalidade não se confunde com o sagrado. O
sentido do sagrado pode ser explicado. No caso do “Alcorão”, é possível
explicar que a escrita tem relação com a história do islamismo. Não precisamos
de livros que violem o sagrado, que digam que Maria não era virgem. Mas eles
não precisam se submeter à confessionalidade, dizer que há só uma verdade.
ISTOÉ -
Há um estímulo ao
preconceito e à intolerância nos livros?
DEBORA DINIZ -
Sem dúvida. Há a expressão da
intolerância à diversidade – das pessoas com deficiência, da diversidade sexual
e religiosa, das minorias étnicas. Há, também, uma certa ironia com as
religiões neopentecostais.
ISTOÉ -
A ideia da supremacia
moral dos que têm religião é defendida?
DEBORA DINIZ -
É. Há equívocos históricos e
filosóficos, como a associação de Nietzsche ao nazismo. As pessoas sem Deus são
representadas como uma ameaça à própria ideia do humanismo. É muito grave a
representação dos ateus. Isso pode gerar desconforto entre as crianças cujas
famílias não professem nenhuma religião. Já que, nos livros, elas estão
representadas como aquelas que mataram Deus e associadas simbolicamente a
coisas terríveis, como o nazismo.
ISTOÉ -
As aulas facultativas
podem se tornar uma armadilha?
DEBORA DINIZ -
Sem dúvida. A criança terá de
explicar suas crenças, o que deveria ser matéria de ética privada. Pior: ao
sair da aula com um livro como esse, as crianças talvez tenham de explicar por
que não têm Deus.
ISTOÉ -
Não há reflexões
históricas sobre o significado das religiões?
DEBORA DINIZ -
Nenhuma. Há uma enorme
dificuldade de nominar as comunidades indígenas como possível religião. Elas
possuem tradições e práticas religiosas ou magia. No caso das afro-brasileiras,
também se fala em tradição.
ISTOÉ -
O que levou o Estado a
proteger o ensino religioso na Constituição?
DEBORA DINIZ -
Foi uma concessão a comunidades
religiosas numa disputa sobre o lugar de Deus e da religiosidade na
Constituição. A religião foi mantida no que caracterizaria a vida
boa e a formação da cidadania. Isso é um equívoco. A religião pode ser
protegida pelo Estado, mas não no espaço de promoção da cidadania que é a
escola.
ISTOÉ -
O ensino religioso está
ganhando ou perdendo espaço no mundo?
DEBORA DINIZ -
Essa é uma controvérsia
permanente. Nos Estados Unidos, um país bastante religioso, não está na escola
pública. Na França, o país mais laico do mundo, também não. Exceto na região da
Alsácia-Mosele. Na Bélgica e no Reino Unido está. Esses países hoje enfrentam
com muita delicadeza a islamização de suas sociedades. Na Alemanha, grupos
islâmicos já começaram a exigir o ensino de sua religião nas escolas públicas.
ISTOÉ -
Mas na França também há
o outro lado, de proibirem vestimentas...
DEBORA DINIZ -
Esse é o paradoxo que a França
enfrenta neste momento, sobre como respeitar o modelo da neutralidade. A lei do
país proíbe símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas – cruz grande,
solidéu, véu. O que o outro lado vai dizer? Que isso viola um princípio
fundamental, que é a expressão das crenças individuais esta no próprio corpo.
ISTOÉ -
Quais são os desafios
do ensino religioso no Brasil?
DEBORA DINIZ -
São gigantescos e podem ser divididos
em três esferas. Uma é a esfera legal. O ensino religioso está sob contestação
nos foros formais do Estado: no Supremo, no MEC e no Ministério Público
Federal. Além de a lei do Rio de Janeiro estar sendo contestada no Supremo, há
uma ação da Procuradoria-Geral da República contra a concordata
Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em 2008.
ISTOÉ -
E do que trata esta
ação?
DEBORA DINIZ -
Um artigo da concordata prevê que
o ensino religioso na escola pública seja, necessariamente, católico e
confessional. Isso é inconstitucional. Estamos falando da estrutura da
democracia. Segundo o ministro Celso de Mello, em toda a história do Supremo,
só tínhamos tido uma ação que tocava na questão da laicidade do Estado. Isso
foi nos anos 40. Agora, temos pelo menos duas. A segunda esfera é como o ensino
religioso pode ou não pode ser implementado. O MEC precisa definir quem serão
os professores, como serão habilitados e quais conteúdos serão ensinados. A
terceira esfera é a sala de aula, a garantia de que vai ser um ensino
facultativo e de que o proselitismo religioso será proibido.
A entrevista original poderá ser
vista por meio desse link aqui:
Que Deus abençoe a todos.
Alexandros Meimaridis
PS. Pedimos a todos os nossos
leitores que puderem que “curtam” nossa página no Facebook através do seguinte
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