segunda-feira, 3 de março de 2014

UM ESTUDO ACERCA DO PECADO – ESTUDO 2 - A QUEDA - GÊNESIS 3 - PARTE 1


Concepção Artística da Queda no Pecado

Essa é uma série cujo propósito é estudar, com profundidade, os ensinamentos da Bíblia acerca do pecado, com uma ênfase especial na questão do chamado “pecado para a morte”. 

UM ESTUDO ACERCA DO PECADO – ESTUDO 2

Continuação....

D. A história da queda.

Os crentes, independente da denominação a que pertencem, e até mesmo muitos incrédulos, concordam que nós temos na história do Antigo Testamento, que descreve a queda de Adão e Eva, um relato eternamente verdadeiro da maneira como o pecado entrou no mundo - ver Gênesis 3:1 a 6. O próprio Senhor Jesus reconheceu a veracidade histórica de Adão e Eva – ver Marcos 10:6 - 8 - onde Jesus repete as palavras que encontramos Gênesis 1:27; 2:24 e 5:2. O autor não consegue entender, e acha muito difícil aceitar, o argumento de pessoas que, chamando-se de cristãs, ensinam que a história de Adão e Eva não é verdadeira e sim apenas uma lenda ou mito. As palavras de Jesus contradizem completamente esta “estranha teoria”. Como veremos, se a história de Adão e Eva não for 100% verídica, então a própria história da salvação não faz absolutamente nenhum sentido.

A essência de Gênesis 3:1—6 é que tanto o homem como sua mulher desobedeceram a uma ordem expressa de Deus, apesar de a ordem ter sido dada diretamente ao homem somente – ver Gênesis 2:16 - 17. A sedução da tentação não é mostrada, de maneira mais enfática, em nenhum outro lugar da Bíblia do que nesta passagem. Vamos analisar este texto mais profundamente:

Verso 1: Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?

Este capítulo não se refere explicitamente a Satanás. O tentador é simplesmente chamado de נְחַשׁ nehash - que na sua forma substantiva é a palavra comumente usada para descrever uma serpente no idioma hebraico - ver Números 21:7 – 9; Deuteronômio 8:15 e Provérbios 23:32. Esta palavra ocorre 31 vezes no Antigo Testamento. A palavra נְחַשׁnehash – ocorre 31 vezes no Antigo Testamento de acordo com a concordância de J. Strong[1]. Possivelmente existe uma relação entre nehash - serpente e a expressão נְחֹשֶׁת - nehoset - bronze. De fato, em Números 21:9 nós lemos que Moisés fez uma serpente de bronze נְחֹשֶׁת נְחַשׁ - nehash nehoset. Séculos depois de Moisés e da geração que havia saído do Egito, nos dias de Ezequias, filho de Acaz, rei de Judá, nós vamos descobrir que aquela “serpente de bronze” ainda existia e que as pessoas se referiam a ela comoנְחֻשְׁתָּן  nehushetan - Neustã – ver 2 Reis 18:4. A relação entre as palavras “serpente e bronze”, no original hebraico, parece querer indicar certa aparência luminosa e brilhante. Esta aparência, tão significativa, certamente serviu para atrair a atenção de Eva.

Neste contexto existe, todavia, uma nuança que possui implicações bem mais sinistras. A expressão hebraica נַחֵשׁ nahash - pode também funcionar como verbo e, neste sentido, significa - praticar adivinhação, agourar etc - ver Gênesis 44:5 e 15; Levítico 19:26 e Deuteronômio 18:10. Este verbo aparece 11 vezes no Antigo Testamento sempre no Piel que é a forma ativa intensa dos verbos no hebraico. Para entender melhor esta idéias vejam o exemplo a seguir: vamos tomar como ilustração, o verbo שְׁבָּר - shebad – quebrar. Na forma Qal, que faz o ativo simples, seria traduzido por “ele quebrou”. Já no Piel, que faz o ativo intenso, seria traduzido por “ele destruiu completamente, esmagou etc.” O substantivo relacionado ao verbo nahash significa adivinhação - ver Números 23:23 e 24:1. Estudos de outras culturas do Oriente Médio[2] nos ensinam que era comum, entre as práticas adivinhatórias, o uso freqüente de procedimentos que incluíam serpentes.

No relato que temos em Gênesis 3:1, nós não encontramos nenhum nome atribuído à serpente. Em vez disso, o texto nos fornece dois outros tipos de informação. Neste versículo nós somos informados tanto acerca do caráter da serpente, bem como recebemos alguma informação acerca da sua origem.

Primeiro, seu caráter. A serpente é definida como sendo עָרוּם earum - mais sagaz que todos os animais selváticos. עָרוּם - earum - mais sagaz não aparece em nenhuma outra passagem do livro de Gênesis mas é muito freqüente no livro de Provérbios onde é traduzido na ARA[3], de forma consistente, por “prudente”. A pessoa que possui esta qualidade, sagacidade, é elogiada e contrastada:

1. com o אֱוִיל ewil - insensato - ver Provérbios 12:16.

2. com כְּסִיל kesil – estulto – ver  Provérbios 12:23; 13:16; 14:8.

3. e com os chamados infiéis que são chamados de  פֶּתִי peti – simples – ver Provérbios 14:15, 18; 22:3 e 27:12.

De forma contrastante, as duas vezes que a palavra עָרוּם - earum - mais sagaz aparece no livro de Jó – ver 5:12 e 15:5 - são pejorativas. Desta maneira temos que a expressão hebraica עָרוּם - earum - mais sagaz é ambivalente e pode descrever tanto características desejáveis como indesejáveis.

Mas, porque teria Moisés, o autor do livro de Gênesis, usado esta expressão tão ambivalente? Talvez o motivo esteja exatamente na própria ambivalência da expressão earum - mais sagaz. Esta palavra era neutra, isto é, não tinha nenhuma conotação moral especial definida – ver versos de provérbios acima. A intenção do autor e o contexto indicavam o sentido que a palavra deveria ter. Isto torna nossa pergunta ainda mais pertinente: por que aplicar uma palavra que não tem conotação moral definida a um ser que é consistentemente mau, nas páginas das Escrituras? Talvez a melhor maneira de entendermos o porquê de Moisés, o autor do capítulo 3 de Gênesis, ter se utilizado de uma expressão ambivalente, no hebraico, seja aceitarmos o fato de que, ao se utilizar da expressão earum - mais sagaz, sua intenção fosse apenas descrever, de maneira mais simples possível e isenta de conotações morais, a estratégia realmente “prudente” adotada pela serpente, ao engajar um diálogo com a mulher.

No que diz respeito à origem da serpente, nós somos informados, de maneira bem clara, que ela era um animal criado por Deus. Tal afirmativa remove, de forma completa e imediata, qualquer possibilidade da serpente ser vista como algum ser sobrenatural ou mesmo com poderes divinos, apesar do fato de que existem muitos defensores destas idéias. Não, a serpente é uma criatura do único Deus. Nem aqui em Gênesis 3:1, bem como em nenhum outro lugar da Escrituras Sagradas, existe qualquer espaço, por menor que seja, para a mais ínfima possibilidade de um conceito dualista de bem e mal. Os capítulos 1 a 3 do livro de Gênesis não admitem nenhuma idéia de que no princípio havia duas forças opostas. Somente Deus existia “no princípio”. A serpente, como de resto todas as coisas, é criatura!

A serpente dirige, então, suas primeiras palavras à mulher. Por que ela fala com a mulher em primeiro lugar em vez de falar com o homem, ou com ambos, não está claro. Em certo sentido a serpente, apesar de estar falando diretamente à mulher, faz referência aos dois - homem e mulher. E isto é tacitamente reconhecido pela mulher como pode ser visto pelo uso dos verbos – no plural - em:

1. Não comereis de toda árvore do jardim – verso 1.

2. Do fruto das árvores do jardim podemos comer – verso 2.

3. Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais – verso 3.

4. É certo que não morrereis – verso 4.

5. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal – verso 5.

Nos versículos acima podemos notar que as formas verbais estão todas no plural, portanto, a conversa entre a serpente e a mulher inclui o homem. E a mulher, aparentemente com o consentimento do homem, age como porta-voz deles dois. Opiniões acerca do por que a serpente falou com a mulher variam grandemente. Estas opiniões podem ser agrupadas em dois campos básicos. De um lado, há aqueles que defendem a idéia de que a serpente procurou a mulher por ser a mesma mais fraca ou mais vulnerável. No outro extremo, nós encontramos aqueles que dizem que a mulher era, pelo menos neste capítulo, mais atraente, e não estamos falando de beleza somente. Para estes últimos, “assim como a serpente era o mais sagaz dos animais, a mulher era mais bonita, mais inteligente, mais agressiva e muito mais sensível do que seu parceiro do sexo masculino”[4].

De qualquer maneira, as intenções das primeiras palavras da serpente são bem evidentes. As palavras usadas pela serpente quando disse: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?”, expressam muito mais choque e surpresa do que questionamento. Para tentar manter a expressão de surpresa por parte da serpente, como acabamos de mencionar, a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, traduz Gênesis 3:1 da seguinte maneira: “A cobra era o animal mais esperto que o SENHOR Deus havia feito. Ela perguntou à mulher: — É verdade que Deus mandou que vocês não comessem as frutas de nenhuma árvore do jardim?”. Como pode ser facilmente constatado, para traduzir o aspecto de “choque e surpresa”, mencionado logo acima, uma considerável quantidade de palavras – são 7 palavras na ARA contra 16 na NTLH[5] - precisam ser colocadas na “boca da serpente”.

Só poderemos entender o que segue, se entendermos a maneira astuta e sagaz com que a serpente se aproximou de Adão e Eva, manifestando “verdadeira” surpresa diante do mandamento de Deus que, literalmente, dizia o seguinte: “E o SENHOR Deus lhe – a Adão - deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás – Gênesis 2:16 - 17. Esta realidade sozinha deve chamar nossa atenção para o fato de que a serpente exagera, de maneira grosseira e proposital, a proibição dada por Deus. Note como a serpente, apesar do tom interrogativo faz, realmente, uma afirmação de que Deus não lhes havia permitido ter acesso às árvores do pomar!

Como poderiam se alimentar então? A mulher não levou em conta que a afirmação da serpente não passava de uma distorção proposital das palavras do Deus Eterno. A intenção final da serpente, ao manifestar aquela atitude de “choque e surpresa”, visava algo muito mais abrangente do que apenas as palavras usadas não dão a entender. As palavras da serpente queriam causar, como de fato causaram, na mente da mulher, uma impressão de que o Deus Criador é um ser cheio de malícia, maldoso até e, obsessivamente ciumento e auto-protetor de Si mesmo. Isto pode ser visto e, trataremos deste aspecto nos próximos parágrafos com maiores detalhes, na tentativa que percebemos em Eva de defender o Senhor Deus. Tal tentativa é um claro indicativo de que a isca lançada havia sido abocanhada.

Como dissemos logo acima, a primeira afirmação da serpente dá a Eva uma perigosa oportunidade de defender Deus. De tomar, por assim dizer, “Seu partido” e, com isto, de tentar esclarecer, para a serpente, as posições de Deus. Uma tentação permanente entre os humanos é esta: Tentação # 1 = falar em nome de Deus! Pelas palavras da serpente, em uma fração de segundos, a realidade de que Deus era um criador e provedor gracioso e beneficente, deixa de ser verdade e precisa ser defendida. Eva assume que a inferência feita pela serpente, de que Deus era, realmente, um ser cruel e opressor de suas criaturas – pois não deixava as mesmas sequer se alimentarem - precisava ser rebatida. Eva sai em defesa do Deus Todo-Poderoso, mas de maneira que pode ser caracterizada, apenas como canhestra. Em Gênesis 3:2 – 5 nós temos aquilo que o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer chamou, de forma bastante apropriada, de “a primeira conversa acerca de Deus”[6].

OUTROS ESTUDOS SOBRE O PECADO

O PECADO — ESTUDO —001 — TERMOS GREGOS E HEBRAICOS E PALAVRAS INTRODUTÓRIAS

O PECADO — ESTUDO —002 — A QUEDA — UMA INTERPRETAÇÃO DE GÊNESIS 3 — PARTE 1

O PECADO — ESTUDO —003 — A QUEDA — UMA INTERPRETAÇÃO DE GÊNESIS 3 — PARTE 2

O PECADO — ESTUDO —004 — A QUEDA PROPRIAMENTE DITA — UMA INTERPRETAÇÃO DE GÊNESIS 3 — PARTE 3 — FINAL

O PECADO — ESTUDO 005 — A VERDADEIRA LIBERDADE

O PECADO — ESTUDO 006 — PECADO E LIVRE ARBÍTRIO

O PECADO — ESTUDO 007 — A BÍBLIA E O PELAGIANISMO

O PECADO — ESTUDO 008 — O PECADO E A SOBERANIA DE DEUS

O PECADO — ESTUDO 009 — HISTÓRIA E QUEDA

O PECADO — ESTUDOS 010 E 011 — O PECADO ORGINAL E A DEPRAVAÇÃO TOTAL

O PECADO — ESTUDOS 012 — PECADO E A GRAÇA DE DEUS

O PECADO — ESTUDOS 013A — PECADO E  O CASTIGO PARTE A

O PECADO — ESTUDOS 013B — PECADO E O CASTIGO PARTE B — JESUS NO GETSÊMANI — PARTE 001

O PECADO — ESTUDOS 013C — PECADO E O CASTIGO PARTE C — JESUS NO GETSÊMANI — PARTE 002

O PECADO — ESTUDOS 013D — PECADO E O CASTIGO PARTE D — JESUS NO GETSÊMANI — PARTE 003

O PECADO — ESTUDOS 013E — PECADO E O CASTIGO PARTE E — JESUS NO GETSÊMANI — PARTE 004

O PECADO — ESTUDOS 013F — PECADO E O CASTIGO PARTE F — JESUS NO GETSÊMANI — PARTE 005

O PECADO — ESTUDOS 014A — O PECADO PARA A MORTE — PARTE A — INTRODUÇÃO — QUESTÕES HERMENÊUTICAS

O PECADO — ESTUDOS 014B — O PECADO PARA A MORTE — PARTE B —DIFERENTES TIPOS DE PENAS E CASTIGOS PARA O PECADO IMPERDOÁVEL

O PECADO — ESTUDOS 014C — O PECADO PARA A MORTE — PARTE C —DIFERENTES TIPOS DE PESSOAS QUE PODEM COMETER O  PECADO IMPERDOÁVEL
http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2015/08/um-estudo-sobre-o-pecado-parte-014_13.html

Grande Abraço e que Deus possa abençoar a todos.

Alexandros Meimaridis

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Desde já agradecemos a todos.


[1] Strong, J. An Analytical Concordance of the Old and the New Testament. Hendrickson Publishers, Peabody, 1996.
[2] Joines, K. R. Serpent Symbolism in the Old Testament. Haddonfield House, Haddonfield, 1974.
[3] ARA – Versão de Almeida Revista e Atualizada no Brasil da Sociedade Bíblica do Brasil.
[4] Tribble, P. Depatriarchalizing in Biblical Interpretation. Em “Journal of the American Academy of Religion”, Volume 41, 1973.
[5] Bíblia Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, 2001.
[6] Bonhoeffer, Dietrich. Creation and Fall. Traduzido do alemão por J. C. Fletcher. SCM Press Limited, London, 1959.


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